O barracão soul dos Black Keys

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Patrick Carney (o baterista) e Dan Aurbach (guitarrista): entre muitas outras coisas eles são os Black Keys

Os Black Keys deram por si num barracão no meio do nada (barracão histórico: Muscle Shoals, estúdio que nos anos 60 e 70 acolheu Aretha Franklin ou Wilson Pickett), e ali gravaram "Brothers", o seu melhor álbum

Descobrir-se de repente num barracão no meio do nada, isolado de todo o divertimento, foi o que salvou Patrick Carney. O baterista dos Black Keys estava, segundo as suas palavras, "todo lixado da cabeça". A relação com a namorada passava por um período particularmente turbulento e ele só queria ouvir música "negra e pesada". Negra e pesada mas não "no sentido dos Black Sabbath", esclarece. Nada de confusões. O peso em que se refugiava era toda uma outra coisa: "Muito hip-hop e o 'Footsteps in the dark' dos Isley Brothers", elegantíssima peça funk datada de 1977.

Retomamos, Patrick Carney estava "todo lixado da cabeça", só lhe dava para ouvir música "pesada", e os Black Keys estavam prestes a entrar em estúdio para gravar um novo álbum. "E portanto", atalha Carney, "dez dias depois de ter terminado com aquela merda toda [a relação, claro], estava em Muscle Shoals, no meio do nada". Em Muscle Shoals, pequena cidade do Alabama com cerca de 12 mil habitantes. Em Muscle Shoals, o histórico estúdio onde, nos anos 60 e 70, gravaram Aretha Franklin, Wilson Pickett ou os Rolling Stones. Foi ali que Patrick Carney acabou por serenar a turbulência por que passava e que os Black Keys, guiados por ela e inspirados pelo local (não exactamente da forma que julgamos), gravaram "Brothers", sexto e melhor álbum da banda que, há muito, muito tempo, surgiu de Akron, Ohio, para ser comparada aos White Stripes e aos Led Zeppelin.

Tal equívoco não tardaria a ser desfeito, que eles de White Stripes tinham apenas a formação (guitarra e bateria) e de Led Zeppelin nada mais do que o gosto pelo blues de antanho. O que era ruído garageiro em ebulição ("The Big Come Up" e "Thickfreakness", os dois primeiros álbuns) foi-se sofisticando na produção e na "riffalhada" e, agora que falamos com Patrick Carney, já os Black Keys editaram um óptimo "Rubber Factory" com espaço para versão dos Kinks, lançaram um EP de versões do bluesman Junior Kimbrough e se reuniram a RZA, Ludacris ou Q-Tip nos Blakroc, projecto de reencontro do hip-hop com parte da sua história (o rock'n'roll e o blues). Ou seja, se alguém ainda confunde os Black Keys com os White Stripes ou com os Led Zeppelin, a culpa não será certamente deles.

Confortáveis na sala de estar

Regressemos a Muscle Shoals. Para uma banda como os Black Keys, que demonstra um extremo apreço pelo passado e pelas suas marcas, gravar ali só poderia suscitar, julgávamos nós, declarações enfáticas sobre a maravilhosa mesa de mistura onde os Stones gravaram a primeira maqueta de "Brown sugar". Acontece que os Black Keys não são pessoal que se deslumbre facilmente, não são gente fascinada pelo peso e pela pose da iconografia. De resto, isso torna-se evidente ao final do primeiro minuto de conversa com Carney. Sucedem-se os "iá, percebes?", acompanhados de um sonoro sugar do copo de refrigerante e a revelação nada rock'n'roll: "Neste momento estou na Califórnia a visitar a família da minha namorada [a nova namorada, claro]".

Patrick Carney em Muscle Shoals: "Pensamos em Abbey Road e imaginamos um edifício intimidante, um estúdio intimidante. Tanto história: os Beatles, os Pink Floyd... Chegas a Muscle Shoals e é uma barraca no meio do campo, com uma sala minúscula. Não é um edifício imponente, é mais parecido com uma mercearia de onde saiu música impressionante durante dez anos". Muscle Shoals só foi intimidante num sentido: "Tanto foi feito ali com tão pouco". Muscle Shoals foi um lugar inspirador por "não ter qualquer som inerente": "Soa a uma sala de estar, o que lhe dá um certo sentido de realidade".

Numa sala de estar no meio do nada, os Black Keys puderam construir-se como bem entenderam. O processo foi o seguinte: "Neste disco interessava-nos começar pelo 'groove', pelo baixo e pela bateria. Fechávamos a canção nesse contexto e depois revezávamo-nos nos 'overdubs'. O Dan preocupava-se com as letras e com as guitarras, eu ocupava-me dos ruídos e dos teclados até agarrarmos as melodias no interior da estrutura". Carney aponta que os Black Keys "aprenderam" este método de trabalho com os rappers de Blakroc: "Vimos como usam o 'groove' e se moldam a ele, como davam uma ideia de grande amplitude a todo o espaço sonoro. Foi nisso que nos concentrámos". Nisso, entenda-se, no aplicar desse método a "carimbos rock'n'roll dos anos 50 e inícios de 70" para criar um som que "se sentisse orgânico e real, mas gigantesco": "Procurávamos profundidade, não densidade; ou melhor, uma densidade de frequências, mais do que uma densidade instrumental".

O resultado foi este: um álbum de fantasmagorias blues e soul, banhado a electricidade rock'n'roll e criado com produtores hip-hop em mente. Confuso? Nem por sombras. Os Black Keys podem perfeitamente ser tudo isso para conseguirem ser eles próprios. Patrick Carney saca uma analogia: "Podes ser um grande 'chef' de cozinha francesa nascendo no Iowa. Poderá ser mais difícil consegui-lo, mas apenas porque não há assim tantos restaurantes franceses no Iowa".

Patrick Carney e Dan Auerbach, hiperactivos com uma saudável tendência para a "trabalho-dependência", têm os Black Keys e inventaram os Blacrok, editam álbuns paralelos (Aurbach a solo, Patrick Carney nos Drummer), gerem um estúdio e uma editora (a Audio Eagle de Carney). A carreira que lhes aconteceu, desde a adolescência passada a trabalhar em restaurantes manhosos 60 horas por semana até às digressões em que não ganhavam dinheiro nenhum, não é um acaso. Partilham isso com todos os grandes: música nascida da paixão e da necessidade. "Isto é a forma como ganhamos a vida, percebes? Precisamos de trabalhar para pagar as contas. Felizmente, tudo isto é também um vício". Um vício? Exactamente: "É a indústria mais fodida da cabeça que existe, mas tudo nela é fascinante. Não existe outra coisa que gostássemos mais de fazer".

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