Os Peixe:Avião já não são apenas um milagre

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Madrugada vai ser apresentado amanhã no Theatro Circo de Braga e quinta-feira no Lux (em Lisboa)

Ainda mal tinham nascido e já eram uma promessa da música portuguesa. Com apenas três anos de vida, ei-los com um segundo álbum, "Madrugada"

À hora marcada ainda não há sinais da chegada de José Figueiredo. A justificação para o atraso é mais do que aceitável: não é todos os anos que o Sporting de Braga está na Liga dos Campeões e o baixista dos Peixe:Avião, recém-sócio dos arsenalistas, não quis deixar de marcar presença no Estádio Municipal de Braga para ver os bracarenses defrontar o Shakhtar Donetsk (e sofrer três golos sem resposta).

Noutro ponto da cidade, no outro estádio do Braga, o antigo, o cenário é diferente: quase não se vê vivalma, para além de alguns atletas saídos do treino do ABC, a comentar a derrota. O Estádio 1.º de Maio é um gigante fantasma de betão, pousado na escuridão desta noite de fim de Setembro. Ainda lá estão as velhas portas de madeira com velhas placas - "Sporting de Braga", "visitante" - a sinalizar os velhos balneários.

É neste estádio que os Peixe:Avião ensaiam - e os Mão Morta, os Smix Smox Smux (onde Figueiredo também toca) e outras bandas de Braga. O telemóvel ajuda-nos a encontrar os Peixe:Avião. Dentro de uma sala, a banda prepara os concertos de apresentação de "Madrugada" (amanhã no Theatro Circo de Braga, quinta-feira no Lux, em Lisboa).

A sala de ensaios é uma confusão de sintetizadores, guitarras, baterias. Estamos em terreno rock - nas paredes há menções à erva, fotografias de mulheres nuas. Uma enorme fotografia do presidente da câmara local, Mesquita Machado, na porta, lembra estranhamente a provocação "agitprop" com Isabel II na capa de "God Save the Queen" dos Sex Pistols.

Os rapazes, com fama de serem cerebrais (costumam ser comparados aos Radiohead, graças à voz de Ronaldo Fonseca e à atenção prestada às texturas e às camadas de instrumentos, mas já lá vamos), são, afinal, uma banda de rock como tantas outras.

Mas há diferenças: poucas bandas com apenas três anos de existência se lançam para um segundo álbum e menos ainda se podem orgulhar de terem gerado um culto desde tão cedo. Aconteceu tudo muito rápido, dizem. "Quando fazes um disco [o antecessor, "40.02", de 2008] seis meses depois de teres feito um EP de seis temas ["Finjo a fazer de conta feito peixe:avião"] é tudo demasiado rápido. Alguns rumos artísticos foram decididos às cinco da manhã a tocar num estúdio. Neste álbum, tivemos muito tempo de pré-produção aqui no estádio, pudemos testar varias alternativas para as mesmas músicas. Estamos todos mais satisfeitos", diz o baterista, Pedro Oliveira.

Amadurecer

Mais coisas mudaram. Gravaram o primeiro EP a correr, sem sequer se conhecerem todos. Luís Fernandes, senhor das guitarras e das teclas, era o ponto de ligação entre os vários membros, dispersos por Braga, Aveiro e Porto. O culto gerado precipitou os acontecimentos e os Peixe:Avião foram elevados a sensação da música portuguesa - Adolfo Luxúria Canibal classificou-os como "o novo fado do século XXI", a propósito de "40.02", e falou num "milagre" esta música ter aparecido nas mãos de cinco pessoas que não se conheciam totalmente.

"Quase nunca nos encontrávamos. Para compor cada um fazia pedacinhos", prossegue Pedro. O método mantém-se - "todos os dias trocamos dezenas de e-mails". Luís Fernandes complementa a ideia: "o processo de compor nos ensaios pode ser penoso e contraproducente porque são muitas pessoas a pensar de maneira diferente". Num ensaio, exemplifica Pedro, "nunca sairia uma sequência com 42 notas". "A maior parte dos arranjos seria impossível [de fazer]. É muito minucioso, depende mais de olhar para um texto musical", diz José Figueiredo.

Calado durante quase toda a conversa, Ronaldo Fonseca anima-se quando lhe perguntamos sobre os textos das canções. Foi a partir deles que surgiu o título do disco. "Para fazer as letras e as melodias ficava muitas vezes a pé até de madrugada. Mas [o título vem] sobretudo da sonoridade que os temas estavam a assumir. As próprias letras iam coleccionando esse tipo de ideias, essas dicotomias. 'Madrugada' encerra as duas faces da mesma moeda." E conclui: "Essas fases do dia são uma altura muito poética, o pôr-do-sol, o nascer do sol - há coisa que inspire mais as pessoas do que isso?".

É curioso que a identidade dos Peixe:Avião não tenha mudado substancialmente desde o primeiro EP, apesar da urgência em editar esse primeiro registo. O que "Madrugada" faz é amadurecer as ideias que já estavam em cima da mesa, enquanto enceta um subtil afastamento dos Radiohead, a banda a quem são mais comparados. A associação ainda faz sentido, mas menos do que no passado. "Neste disco até tivemos que ser castradores para não nos pormos a jeito. Fomos pelo caminho mais difícil", afirma Pedro Oliveira.

Tiveram tempo para convidar Bernardo Sassetti (piano em dois temas) e Manuela Azevedo, dos Clã, que canta "Fios de fumo" com Ronaldo Fonseca. As participações surgiram da forma "mais espontânea possível. Foi pegar no e-mail e dizer: 'Desculpa, gostávamos que participasses no nosso disco'", conta o baterista. Não passou muito tempo desde que os Peixe:Avião citavam os Clã em entrevistas; agora, ei-los com Manuela Azevedo no seu disco - o sucesso também passa por estas conquistas. "O que admiramos nos Clã é terem conseguido crescer sem ter a problemática do crescimento - que é venderes-te. Dão muita importância ao detalhe, as músicas são feitas de muitas texturas, como as nossas", diz. Mas mais do que "uma referência musical", são um exemplo de trabalho "sem concessões", acrescenta Luís Fernandes.

Não falam por falar: "Madrugada" é uma edição de autor e a banda montou uma linha de montagem na sala de ensaios para passar horas a colar autocolantes nos discos antes de seguirem para as lojas. Ao segundo disco, já não são uma promessa, mas também não são consagrados. Há ainda que trabalhar e estão dispostos a isso.

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