Bethânia agora é um oásis

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LEO AVERSA / DIVULGAçÃO

Não é um elogio da solidão, mas do poder que ela encerra. Oásis de Bethânia é um disco de profunda introspecção sobre o ser, o “eu” sozinho, a resistência e a fé. E é um dos trabalhos mais tocantes de Maria Bethânia nas últimas décadas

Teria gravado este disco sozinha, se soubesse tocar algum instrumento. E os músicos que trabalharam com ela adaptaram-se a esse desejo. Chamou-lhe Oásis de Bethânia e quis ver nele a "vida pura, nítida", que há no ser humano quando tudo o que o rodeia lhe é adverso. Pensou nas agruras do sertão e fez-se, ela mesma, oásis. Maria Bethânia só no fim do ano começará a rodar em palco o disco que agora chega às lojas. Mas estará nos coliseus do Porto e Lisboa, a 8 e 12 de Maio, a cantar apenas Chico Buarque.

Quando se pensa em oásis pensa-se em deserto. Há algum deserto à volta deste seu disco?

Não pensei no que tinha à volta, pensei exactamente no que o nome indica. Naquele lugar silencioso, solitário, mas que tem vida pura, nítida. Quando lhe chamo Oásis de Bethânia, isso para mim é o sertão brasileiro, onde não tem água. É um lugar onde se está dentro do limite divino e só, não se conta com mais nada. É um pouco como viver no deserto e encontrar o oásis na solidão. Guimarães Rosa fala que o sertão é o sozinho. E essa é a característica deste disco meu: é um disco solitário, não no sentido nostálgico, mas é sonoramente e poeticamente solitário. E é um disco de assinaturas: cada músico, cada maestro que eu escolhi, sozinho com o seu instrumento assina um arranjo, uma leitura daquela música. E eu canto na maioria das vezes só com um instrumento.

Na entrevista colectiva que deu no Brasil, disse que se pudesse gravava o disco sozinha. É mesmo verdade?

[Gargalhada] Gravava. Faria somente voz e piano, ou voz e violão, se soubesse tocar. Ou até a capella. Mas eu lido com música e música precisa de harmonia, de outra compreensão, de músicos extraordinários (não sou nada disso, sou uma intérprete), então preciso desses encontros primorosos e únicos na vida. A favor da música.

Trabalhou com Jorge Helder para a concepção do disco. Porquê?

Todos os meus discos nos últimos dez anos têm um trabalho de Jorge Helder. Só que neste disco eu não queria um trabalho de maestro, não queria que tivesse a sonoridade de uma só pessoa além de mim. Seria eu com a minha voz e instrumentos chegando e completando ou trazendo elementos para a minha voz.

Como é que foi escolhendo os músicos? Guiada por cada canção?

A primeira canção, Lágrimas, é uma música que eu conheço desde menina, a minha mãe também a cantou a vida inteira, é do nosso querido e saudosíssimo Orlando Silva. Quando pensei nela, pensei logo no Hamilton de Holanda. Queria o bandolim dele, a modernidade harmónica dele, o talento extraordinário que ele tem. Em seguida, queria uma música com percussão, e na Carta de amor do Paulinho Pinheiro com o meu texto eu chamei o Marcelo Costa. Essas duas foram as chaves do disco. Dali eu fui pensando. O próprio Jorge Helder me sugeriu Lenine e eu lembrei-me logo da canção do Chico [O Velho Francisco]. Quando o Djavan me mostrou a canção que fez para mim [Vive], ao violão, eu quis gravar com o violão dele. Todos foram assim, escolhidos dessa maneira a partir da minha sensação com cada música. Ou por opiniões. O pianista de Salmo, André Mehmari, foi sugerido pelo Hamilton de Holanda.

Mehmari é um jovem pianista [n. Niterói, 1977] muito elogiado. Já conhecia o trabalho dele?

Ah, sim! Essa geração de instrumentistas brasileiros é deslumbrante. Há muitos e muitos anos que eu não via uma colecção tão extraordinária: o André Mehmari, o Hamilton de Holanda, o Yamandu [Costa], o Marcelo Martins, o Maurício Carrilho, a Luciana Rabello (irmã do Raphael), o Castilho, o Vítor Gonçalves (pianista que vai a Portugal comigo), são todos eles músicos de primeiríssima linha, é uma geração muito bonita que está estudando a música com profundidade. Muito boa.

Convidou também um músico muito ligado à sua carreira, o maestro Jaime Alem, para tocar violão e violas em Fado, de Roque Ferreira...

Convidei-o porque ele é um dos maiores violeiros de viola caipira brasileira. Entreguei a canção a ele e ele fez um show com três violas caipiras, ficou muito bonito...

Na "Carta de amor" você começa a cantar em falsete, o que é raro no seu trabalho.

O falsete, por ser uma região bem distante do meu timbre, entrou no Mar de Sophia [disco de 2006] como uma criança cantando e aqui entra como uma coisa longínqua, meio irónica mas suavizada exactamente pelo falsete.

Mas logo a seguir, na mesma canção, o texto escrito por si (e que é dito, não cantado) é bem mais sério e muito introspectivo. Como é que ele nasceu?

Na verdade, eu precisava escrever essas palavras no momento e vivê-las depois, coisa que não costumo fazer. O que eu escrevo eu queimo, não gosto nem de reler, quanto mais mostrar para outras pessoas. Mas desta vez mostrei ao Paulinho [Paulo César Pinheiro] e ao Fauzi Arap. E pedi que ele fizesse alguma criação sonora em cima. Ele disse que não mexia no texto e ia ver o que podia fazer. E fez os refrões a intercalar.

Quanto tempo é que levou a escrever o texto? Foi rápido ou demorou dias?

Foi um suspiro. Cinco minutos. Muito rápido. Na verdade ele é uma saudação a todos os que me tocam, me comovem, com o que é puro, como uma nascente.

Como é que um disco com contribuições tão variadas tem tão grande unidade?

Porque o sentido dele era um, sozinho. Ele brotou daí. O sertão é o lugar do assombro, do susto. Eu me apoio nessa visão sertaneja do Guimarães Rosa: o silêncio do sertanejo, a expectativa da vida sem água, a conformidade e a fé. Porque o sertanejo tem fé. Ele é calado, nobre, silencioso, digno. E isso é que conduziu e conduz o meu trabalho.

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