A bunch of meninos é que eles não são

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Para Pedro Gonçalves, os Dead Combo já descobriram a sua linguagem. Para Tó Trips, a sua música é uma “salganhada de ingredientes” a que conseguem “dar um bom sabor”. "A Bunch of Meninos", o novo álbum, teve parto rápido. Tão rápido que os Dead Combo ainda não sabem bem o que têm perante si

Pedro Gonçalves larga a guitarra para uma breve sessão de pugilato com um lutador mexicano (mascarado, claro está) que andava para ali, insidioso, a roubar-lhe o contrabaixo e a fazer outras patifarias. Tó Trips deixa de tocar por um breve momento para passar uma guitarra a Pedro Gonçalves, que acabará despedaçada na cabeça do lutador. Pedro Gonçalves volta à guitarra, Tó Trips continua a tocá-la furiosamente. Os Dead Combo acabarão a correr rua fora, noite iluminada pela luz difusa de candeeiros, enquanto se ouve o som de perseguidores furiosos (imaginamos). Saem apressados de um porto de abrigo pouco amistoso, hão-de encontrar música noutro porto de abrigo (logo descobrirão se é ou não acolhedor). 

A descrição anterior pertence ao vídeo de A Bunch Of Meninos, preto e branco realizado por Paulo Abreu para o tema-título do novo álbum, o quinto de originais dos Dead Combo. O vídeo é de certa forma a continuação, nove anos depois, daquilo que víramos nas imagens, também realizadas por Paulo Abreu, de Cacto. Aí os Dead Combo corriam Lisboa fora como em policial do cinema negro americano, filmados com o granulado e a luz do expressionismo alemão, enquanto procuravam ocultar o corpo de um crime com perseguidores no encalço. Digamos que o tempo passa e não passa pelos Dead Combo.

É o que compreenderá quem os vir na digressão iniciada dia 8 de Março em Guimarães e que passa hoje pelo Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, amanhã pelo Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha e que, dia 21, será marcado por um concerto especial em Lisboa. A banda actuará no Coliseu dos Recreios e o público estará, não na plateia, mas no palco com os músicos. Ou seja, todos seremos Dead Combo naquela noite – o que, para uma banda que é a sua própria ficção, faz todo o sentido. 

“Enquanto eles os dois corriam pelas ruas em direcção ao infinito, eu mantinha-os à distância de uma bala. Depois entrou o de bigode, o mexicano de casaco de pele de coelho. Foi quando partiram os seis em busca deles. ‘Tus amigos… Esos que se hacen llamar músicos, están muertos!’ – disse.” Assim lemos no texto incluído no caderno que acompanha o disco e que nos introduz o imaginário de A Bunch of Meninos. Os Dead Combo, naturalmente, não morreram. “Dias mais tarde, encontrámo-nos num hotel distante e celebrámos termos escapado vivos daquele buraco em que se tinha transformado a cidade”, continuamos a ler. Esta não é a história de A Bunch of Meninos – é o quadro que o envolve, tal como acontecia no bas-fond de bares de cais decadentes em Lusitânia Playboys ou no cenário de viagem de Lisboa Mulata. Como anteriormente, os Dead Combo deixaram que a música brotasse e, depois disso, perscrutaram aquilo que deles nasceu para procurar uma ideia de cenário, uma sugestão de rostos ou narrativa.

Aqui, pela primeira vez desde que se estrearam em álbum em 2004, com Vol. 1, ainda não conseguem ver claramente o que têm perante si. “Por alguma razão, não sinto este disco tão próximo como sentia os outros por esta altura. Ainda estou a percebê-lo”, diz Pedro Gonçalves, sentado com Tó Trips e com o Ípsilon à volta de um chá numa Casa Independente, em Lisboa, fora do horário de expediente. Essa distância tem uma explicação simples. A Bunch of Meninos foi álbum gravado à flor da pele. “Foi o mais rápido a fazer. Muito mais rápido que os outros. O pessoal numa semana tinha o disco pronto”, conta Tó Trips.

Anteriormente, ou o ambiente dos discos e as direcções que seguiriam surgiam-lhes em “retiros”. Desapareciam algumas semanas, sem carta nenhuma na manga, e esperavam que algo nascesse – e nascia sempre: temos uma discografia que o comprova. Desta vez não saíram de casa. Encontraram-se algumas vezes na de Pedro, trocaram “malhas” para aqui e para ali, deitaram algumas fora, aproveitaram outras. E depois meteram-se num estúdio. “Fizemos o que toda a gente faz, mas nós fizemos pela primeira vez”, confessa Pedro. Entre um domingo e uma quarta-feira, A Bunch of Meninos estava preparado. “Ainda temos dias de estúdio para gastar…”

Pela primeira vez, trabalharam como se faz habitualmente, mas não notamos um sobressalto assinalável na música. Como escrevemos em crítica publicada na última edição do Ípsilon, este é o disco “mais descarnado e mais directo dos Dead Combo”: “Uma espécie de regresso a uma ideia de essência, ou melhor, das várias essências que compõem esta música vagabunda”. Os Dead Combo que em 2005, em Cacto, corriam pelas vielas do Bairro Alto e Alfama para atirar um corpo ao Tejo, estes que agora vemos a desancar lutadores mexicanos antes de se escaparem rua fora, correm ainda (à procura de qualquer coisa, à procura da descoberta), mas já não precisam de fugir para descobrir o que querem ser. “Chegámos a um ponto em que já temos uma linguagem própria mais definida e clara na nossa cabeça”, afirma Pedro Gonçalves. “Sinto que estamos mais seguros do que fazemos. Não há tanto aquela indecisão do ‘será que isto vai ficar bem?’ Isso reflecte-se na música”. Na música dos Dead Combo: “Uma sopa com uma salganhada de ingredientes a que conseguimos dar um bom sabor”, resume Tó Trips. Uma receita sempre sujeita a actualização: “Um gajo está sempre a descobrir coisas. No Lisboa Mulata foi mais aquele lado africano, este tem coisas muito híbridas que nem sei de onde vêm”, aponta Pedro Gonçalves.

A terceira entidade

Desde a passada segunda-feira que os Dead Combo estão a tomar do canal de Spotify do Ípsilon. Pedro Gonçalves e Tó Trips escolheram por dia três canções cada. O alinhamento que dali nasceu é representativo dessa hibridez de que fala o contrabaixista: Beck, Queens of The Stone Age, Charles Mingus, Filho da Mãe, Nick Cave, PAUS, John Zorn, Motorhead, Glenn Gould, Tiago Sousa, Thee Oh Sees, Japanther, Lou Reed & John Cale, Cesária Évora. Não será fácil descobri-los a todos na discografia dos Dead Combo. Não será com a totalidade destes nomes que lhes desenhamos a cartografia musical. De resto, estaríamos a compreendê-los muito mal se julgássemos que a sua música é simples catálogo de influências. “Uma banda não é só a identidade de cada um dos elementos. É não estar ali com egos e as pessoas estarem dispostas a fazer música juntas”. Os Dead Combo não são Pedro Gonçalves mais Tó Trips: são a terceira entidade que nasceu quando os dois se juntaram.

Mais de uma década depois do início, “o gajo do rock” e o “gajo do jazz” que se encontraram para dar a sua música à música de Carlos Paredes mantêm o fio condutor intacto: “descobrir, experimentar, conhecer mais; é assim que as coisas se ampliam, que a música se expande”. É um processo orgânico, viagem a viagem, colaboração a colaboração fora dos Deada Combo.

Em A Bunch of Meninos encontramos unicamente Tó Trips e Pedro Gonçalves, com a colaboração ocasional do baterista Alexandre Frazão e do percussionista António Serginho. Encontramos um duo que sublimou todos os caminhos anteriores numa síntese inspirada – “despidos à sua essência”, escrevemos na crítica. A tal “sopa” bem apurada onde cabem fado, coladeras, tango ou rock’n’roll. Onde ouvimos um Waiting for Nick at Rick’s Café (Nick, de Nick Cave, convidado para o disco mas que declinou o convite), um “Waits” que é referência óbvia (Tom Waits, pois claro), uma Dona Emília que é a senhora responsável pela limpeza da Galeria Zé dois Bois, casa que praticamente viu nascer os Dead Combo. Lá mais para o fim, deparamo-nos com Mr Snowden’s Dream. Refere-se, obviamente, a Edward Snowden, o responsável pela divulgação da imensa rede de espionagem a cidadãos e estados mantida pela NSA americana. Uma homenagem com o dedo de Pedro Gonçalves: “Teve a coragem de abdicar de tudo. Só perdeu, não teve qualquer vantagem pessoal. O sonho dele, acredito eu, é o de uma sociedade mais transparente, mais justa e mais democrática, ao serviço das pessoas”. Confirma-se: os Dead Combo, que até já se desenharem enquanto personagens de BD (há um álbum, Soundbites, da Chiado Editora, que compila as tiras todas), são ficção e efabulação com os pés assentes na realidade. 

A conversa começara com Tó Trips e Pedro Gonçalves a falar do México que encontraram quando de uma série de concertos em Outubro passado (lá está, os mexicanos da história inscrita em A Bunch of Meninos não surgiram do nada). Falaram-nos dos cactos que não viram, do país que não era exactamente como os clichés querem fazer crer. Falam entusiasmados dos músicos mariachi que com eles tocaram Mr. Eastwood, canção de Vol. 2 – Quando a Alma Não é Pequena, num dos concertos. Foram contratados na rua, horas antes do concerto, depois de Tó e Pedro os terem visto entre as dezenas de outros músicos que ofereciam os seus serviços na praça de uma das cidades visitadas. “Aquilo é quase tipo putas”, ri-se Tó Trips. “Quando fomos à Praça Garibaldi, na Cidade do México, estavam lá uns duzentos músicos. E à berma da estrada à noite, estavam mais a fazer sinais aos carros. ‘Mas o que é que este pessoal está aqui a fazer?’, perguntava eu.” Estavam à espera de ser contratados para o que quer que fosse: uma declaração de amor, a celebração de um aniversário, a animação de uma festa improvisada pelo correr da tequila. Os Dead Combo não contrataram os seus mariachi para nada disso. Viram-nos, ouviram-nos, perceberam que só poderiam ser boa companhia para o seu Mr. Eastwood. Foi impulso mas não foi improviso.

Os Dead Combo conhecem a alma que anima a sua música. Os Dead Combo gostam da aventura, da descoberta. Os mariachi estavam mesmo a pedi-las. Consta que os Dead Combo não tiveram que fugir rua fora nem de partir uma guitarra na cabeça de ninguém. Isso foi depois. A bunch of meninos é que eles não são.

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