Reaccionários, quem?

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Os The Men fazem um som do presente mas com os pés no passado: Creedence Clearwater Revival, Bob Dylan, Van Morrison

Ponto final parágrafo: "Tomorrow’s Hits", o quarto disco dos The Men, é o melhor disco rock de 2014. Soa tão velho que se torna vibrante, como se o rock’n’roll tivesse acabado de nascer

Imaginem uma colecção de riffs clássicos que, extraordinariamente, nunca haviam sido tocados antes. Caem em catadupa, como âncoras de canções que já estão em andamento quando cada tema começa, e que, apesar de eventualmente acabarem, podiam continuar para sempre. 

Nem sequer são “canções”, antes improvisações em que por milagre surgem refrães grandiosos e explosivos: órgãos como dinamite, saxofones como rajadas de metralhadora e uma harmónica que soa a serra eléctrica. Resumindo: imaginem o melhor disco rock’n’roll da época que vai de 1968 a 1972. Não precisam de imaginar mais: chama-se Tomorrow’s Hits, é o quarto álbum dos The Men e o melhor naco de rock’n’roll clássico que ireis ouvir em 2014.

Um título assim não surge por acaso e Mark Perro, o extraordinário guitarrista dos The Men, que ainda encontra tempo para esganiçar a voz e berrar a cada 16 compassos, assume-o com frontalidade: “Há no título um lado de gozo. Não somos ingénuos, sabemos que este disco não tem um som novo — ou melhor, é um som novo para nós, mas bebe muito no rock clássico. E sabemos que este som esteve outrora na base de muitos êxitos, mas que isso não vai acontecer connosco — nunca tivemos um êxito nem vamos ter.”

Não ter êxito é isto: Perro dar-nos uma entrevista à hora de almoço em Nova Iorque, antes de voltar a um part-time que arranjou a acartar móveis. “Às vezes procuramos trabalhos extra para ganhar dinheiro, porque só a música não dá. Não me incomoda, porque gosto de estar ocupado. Não há nada de errado em fazer um pouco de mais dinheiro. Como nunca o tive, digo logo que sim a tudo. Não importa que trabalho é — eu aceito-o.” 

Perro é um duro. Quer dizer, em conversa é aquilo a que podemos chamar um tipo impecável, sem merdas. A dureza é auto-retrato dele: “ Somos homens de homens”, diz Perro, definindo-se e aos colegas de banda como uma espécie de últimos Clint Eastwoods vivos. “Gostamos de beber whiskey, de fumar, de resmungar. Não somos suaves, não gostamos de ternura nem de doçura. Somos mais de testosterona.” A conclusão de tal definição é que Tomorrow’s Hits também “é um disco de homens”: “Enfias uma data de homens numa sala e dá nisto.” 

Nem sempre deu “nisto”, convém realçar. Quando os The Men surgiram, em 2008, eram uma banda estritamente punk — corrosiva, suada, por vezes prenhe de uma fúria quase demoníaca, mas apenas e só punk. Foi assim durante os primeiros dois discos, Immaculada (2010) e Leave Home (2011). Ao terceiro, Open Your Heart(2012), insinuava-se uma abertura sonora que se materializou com o magnífico New Moon (2013) e que agora se cristaliza na obra-prima acabada de lançar. “Os primeiros discos eram punk barulhento, o que nos agradava na altura, mas depois começámos a desejar fazer algo mais universal — o punk é muito restritivo, muito singular, centrado apenas na agressividade, e queríamos algo mais completo, mais abrangente, com mais emoções”, conta Mark. 

A grande mudança deu-se em 2011. Cansados das constantes digressões e fartos da simples descarga sónica, os rapazes estiveram prestes a encerrar actividade. Chris Hansell, vocalista e baixista até esse ano, saiu da banda; Ben Greenberg substituiu-o e Kevin Faulkner trouxe a sua lap steel guitar. De súbito eram uma outra banda, “que não fazia ideia que banda era, que banda podia ser, ou sequer que banda queria ser”.

Algo maior

Há 40 anos, aconteceu o mesmo à The Band: habituados a serem banda de suporte de terceiros (o mais famoso dos quais Bob Dylan, na sua transição para a fase eléctrica), quando deram por si a sós viram-se sem saber o que fazer. O resultado foi fecharem-se na famosa Pink House e gravarem alguns dos mais extraordinários discos de rock total, aquele rock que vem das profundezas da América, em que blues e country e a electricidade se confundem. Isto além das Basement Tapes, com Dylan.

O processo pelo qual os The Men passaram é semelhante: “A banda estava em transição, não sabíamos para onde íamos, apenas que não estávamos contentes com a restrição do nosso som. Passámos um ano fechados, a atirar o barro à parede, a experimentar tudo.” 

É que os The Men, antes de serem músicos, são melómanos compulsivos e não conseguem evitar comparar a sua música à dos outros e querer fazer toda a música possível. “Infelizmente somos todos grandes coleccionadores e recolectores de obscuridades. Na discografia caseira de cada um de nós há de tudo: black metal, Peggy Lee, Cohen, surf-rock, rockabilly, tudo. E nós queríamos deixar isso soar musicalmente”, reconhece Mark Perro. Se há frase perfeita para definir os The Men, então é esta: “Não queremos ser uma banda de um só género. Queremos ser livres e enfiar tudo. É isso que importa: enfiar tudo.” Ron Jeremy não diria melhor.

Está identificado o espírito que subjaz a New Moon e a Tomorrow’s Hits, escritos quase em simultâneo em 2011, embora só tenham saído em 2013 e 2014, respectivamente, por causa das editoras: “Fizemos o New Moon e dois meses depois enfiámo-nos num estúdio para fazer o Tomorrow’s Hits com as malhas que haviam sobrado.” 

Ao ouvinte comum, Tomorrow’s Hits, pela sua profusão instrumental, parece o álbum mais complexo da banda, mas Mark assegura que “é o mais simples de todos”: “Um, dois riffs, e estabelecida essa base simples mas firme trata-se apenas de improvisar, de juntar coisas até a canção se tornar maior.” A teoria de Mark é que “é a combinação de todos os instrumentos que dá essa ideia de complexidade”. Para atingir o som que queriam, os The Men gravaram ao vivo em estúdio com “microfones individuais em cada instrumento e microfones gerais para apanhar o ambiente”. “Somos uma banda a sério, para o melhor e para o pior. Se isso soar reaccionário, então que se foda.”

Como se estivessem em 1940, os The Men gravaram Pearly Gates, uma das bombas do disco, directamente para fita, sem uma edição que fosse: o que se ouve é exactamente o que eles tocaram uma única vez no estúdio. Mark é capaz de estar a exagerar quando afirma que Pearly Gates “é sempre diferente, nem estrutura tem”. Para todos os efeitos, reconhece-se ali uma canção com princípio, meio e fim, embora não exactamente por esta ordem. E é capaz de estar também a exagerar quando diz que a banda “não manda nestas canções”: “Tocamos em algo que é maior do que nós e tentamos agarrar essa energia. A canção já começou antes de nós e vai continuar depois de nós.”

Mas é verdade que de alguma forma eles encontraram uma ligação com uma espécie de inconsciente colectivo americano, do qual fazem parte, por exemplo, os Creedence Clearwater Revival, que entretanto se tornaram heróis para os The Men: “O que os Creedence fizeram não era revolucionário, era um pedaço numcontinuum maior. Eles viviam e respiravam esse continuum, sabiam que eram apenas uma peça do puzzle.” Logo a seguir, Dylan é para aqui chamado: “É o exemplo de um músico cujas canções mudam radicalmente: a mesma canção tanto pode explodir como pode ser suave ao piano.” Van Morrison idem: “Com ele nunca se sabe aonde uma canção vai parar.” 

O punk, claramente, ficou para trás. Os The Men, agora, estão “também a pôr um carimbo numa tradição” que não sabem “qual é”. Ponham o carimbo onde quiserem, mas acima de tudo no passaporte: um carimbo a dizer Portugal. Ouviram, senhores que programam concertos?

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