Improvisação de combate

Foto

Rodrigo Amado põe uma estaca em 2014 com três edições soberbas que dão razão aos que o colocam entre os maiores da música improvisada mundial

Tivesse acontecido num bar e teriam sido expulsos e provavelmente presos pelo desacato. Tivesse acontecido na rua e alguém teria de separá-los antes que acabassem com os narizes a espirrar sangue. Tivesse acontecido em casa e teriam instado o convidado a retirar-se sem direito a despedidas afectuosas. Mas aconteceu num palco. Recebido pelo anfitrião Rodrigo Amado no Teatro Maria Matos, em Lisboa, em Março de 2013, Peter Evans, trompetista norte-americano extraordinário que tomou de assalto a cena da música improvisada na última meia-dúzia de anos, comportou-se verdadeiramente como um rufia. Assim que o concerto se iniciou, como se tivesse soado um gongo num ringue de boxe, Evans desatou a atacar. “O concerto para mim, para o Miguel [Mira] e para o Gabriel [Ferrandini] foi uma autêntica batalha”, confessa Rodrigo Amado. “É preciso ter consciência do que é estar em palco em improvisação total, sem qualquer tipo de rede, atacados por um quarto músico com argumentos muito fortes e uma técnica absolutamente ímpar. Aquilo podia descambar a qualquer momento.”

É isso que se ouve em Live in Lisbon, um dos três álbuns que Rodrigo Amado acaba de lançar em simultâneo, numa assumida “estratégia de choque” para conseguir concentrar uma atenção que muitas vezes escapa a quem opera nas águas algo pantanosas da música improvisada. O concerto e a gravação de estúdio (The Freedom Principle), dois dias mais tarde, do Motion Trio com Peter Evans eram um risco planeado e integrado na comemoração dos 30 anos de carreira do saxofonista. Mas mal sabia Amado que a experiência seria tão transformadora. “Andava fascinado pela linguagem incisiva do Peter Evans, um daqueles músicos que entram no que está a ser tocado e em vez de se adaptaram impõem uma ideia específica, mesmo que totalmente oposta. Nos primeiros momentos, ficámos mesmo chocados, porque ele não vinha ao encontro do que estávamos a tocar. Estava a fazer música por oposição, por conflito.”

Por isso mesmo, um dos temas de Live in Lisbon tem por título Conflict Is Intimacy, depois de Rodrigo Amado ter concluído que “situações muito fortes de conflito acabam por se tornar particularmente íntimas — há uma troca emocional muito grande entre as pessoas”. Em estúdio, esse conflito foi atenuado, depois do choque inicial do palco. Ao segundo combate com um adversário que surpreende, experimentam-se novas defesas. Mas o objectivo de Rodrigo Amado insere-se numa tendência que tem procurado para a sua evolução: expor-se cada vez mais, aceitar riscos cada vez maiores. É isso que o tem levado a procurar a companhia de músicos de topo como Paal Nilssen-Love, Joe McPhee ou Joe Giardullo, ao lado de quem o esforço de adaptação exige uma transformação da própria linguagem musical, ou a aventurar-se num trio com Ferrandini e DJ Ride, chamado Hurricane, ainda a dar os primeiros passos. “Com o Peter Evans”, confirma, “fizemos um esforço tão grande para reagir e superar o desafio que, no fim, estávamos mudados”. “Antes, estas linhas antagónicas na improvisação eram pequenos choques a que nos esquivávamos; agora encaramos de frente, incorporamos e processamos.”

O convite de Peste

Os dois discos do Motion Trio lançados pela lituana No Business e a estreia do Wire Quartet pela portuguesa Clean Feed (apresentação a 18 na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa) são os mais recentes acrescentos a uma carreira que Rodrigo Amado iniciou aos 18 anos e cuja rápida evolução se deveu, antes de mais, ao núcleo de músicos com que se cruzou no Liceu Maria Amália, e que gravitava em torno de “um apartamento enorme ao lado do liceu” que pertencia a Manuel Mota Veiga. “Os Ena Pá 2000, a Anamar, o Carlos Martins ensaiavam lá, passaram por lá centenas de músicos, e nós estávamos dias inteiros a tocar em vez de irmos às aulas. Foram dois ou três anos em que não fazíamos outra coisa, eram sessões de sete ou oito horas.” É neste período que Amado começa a tocar com Rafael Toral e Zé Pedro Moura nos SPQR, logo se abrindo a porta para colaborações com os Pop dell’Arte e o Acidoxibordel de João Peste, assim como com os Mão Morta, nos tempos em que o pop/rock nacional se atirava atrevidamente para os braços da música de vanguarda — hoje, Amado empresta o seu saxofone ao trio de rock psicadélico-stoner instrumental Black Bombaim.

A investida mais a sério na composição em tempo real — definição que prefere — inicia-se, curiosamente, em resposta ao convite de Peste para tocar no Rock Rendez Vous, no aniversário da editora Ama Romanta. “Propus ao Luís Desirat uma improvisação em duo e correu muito bem”, lembra Amado. “Fiquei com aquela coisa de a improvisação não ser apenas para estar com os amigos a curtir, mas sim uma disciplina a desenvolver e a trabalhar.” Primeiro, através desse duo com Desirat, depois com todos os músicos da praça dispostos a embarcar nesta busca incessante pelo desconhecido. 

Mas na altura em que Pedro Costa o desafiou para integrar a equipa fundadora da Clean Feed, em 2001, Amado atravessava um período de saturação, cansado de projectos que eram verdadeiras one night stands musicais. A editora ofereceu-lhe dois ganchos fundamentais que o saxofonista agarrou com sede de experiências consequentes: a oportunidade de colaborar com músicos estrangeiros da estirpe de Dennis González, Steve Swell ou Lou Grassi, e a construção de working bands — a estabilidade atingida com o Motion Trio e o Wire Quartet — graças ao seu encontro com jovens músicos como Miguel Mira e Gabriel Ferrandini. “Depois de começar esse caminho, não havia volta e cheguei a um outro tipo de realização musical.”

É essa realização que agora ouvimos em dose tripla. Uma música do momento, com recursos de 30 anos.

Sugerir correcção
Comentar