Somos todos Grécia

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Vinicio Capossela regressa a Portugal com "Rebetiko Gymnastas" — cantando o território e a cultura que se estendem do Sul da Europa ao Sul das Américas

Um canto de um café, com as suas paredes de pedra austera em semi-penumbra. Um homem de pé, cantando e tocando enquanto, sentados, três homens o acompanham em viola, acordeão e bouzouki. Casaco caído, suspenso de um dos braços. Corpo em movimento dramático, a voz que canta o que parece ser um lamento em câmara lenta. O casaco acabará atirado ao chão, sinal de fim e de vitória. A canção termina.

O homem do casaco é Vinicio Capossela, figura de primeira grandeza em Itália, nome de culto em Portugal desde que nos visitou pela primeira vez há sete anos. Os homens que o acompanham são o conjunto de Manolis Pappos, virtuoso do bouzouki. Tocam um rebetiko, a canção que fermentou nos portos gregos há mais de uma centena de anos, cruzando vozes locais e tradições musicais do Médio Oriente e do Sul do Mediterrâneo. 

“Rebetiko é uma música emblemática, um caso de resistência cultural num país que, desde sempre, nos fala do ser humano de uma forma universal.”, escreve-nos Vinicio Capossela, antecipando a Grécia (e o resto do Mediterrâneo e mar adentro até Cabo Verde e até à América Latina) que trará até nós. Na próxima quarta-feira, 11, apresentar-se-á em Lisboa, no Teatro Tivoli. Um dia depois estará no Theatro Circo, em Braga.

“Os rebeti eram pessoas à margem da sociedade, eram perseguidos”, ouvimos explicar. “Eram pobres e morreram pobres. Mas deixaram cultura e as suas canções duraram 80, 100 anos”, ouvimos outra vez acrescentar. As duas vozes (tal como a imagem que abre este texto) são de Indebito, o documentário realizado por Andrea Segre e apresentado em Abril em Portugal, na Festa do Cinema Italiano, que põe Vinicio Capossela como protagonista de uma busca: a desta música e dos seus protagonistas, hoje, num país atormentado pela terrível crise que sobre ele se abateu em 2008.

Indebito, o filme, sucede a Rebetiko Gymnastas, o álbum que Vinicio Capossela gravou em 2007, transpondo a sua música para a linguagem do rebetiko e alargando-a aos sons de outras cidades portuárias (Ricardo Parreira, por exemplo, gravou no disco a sua guitarra portuguesa). “Tinha sido feito para que o público grego conhecesse algumas das minhas músicas”, escreve. Acontece que o disco ficou na prateleira até 2012, ano em que foi editado, e, nessa altura, “a crise tinha mudado tudo”: “Senti a necessidade de tentar compreender mais de perto o que se estava a passar.”

Vinicio Capossela viajou pela Grécia e tomou notas num caderno de apontamentos que foi entretanto transformado em livro — TEFTERI. Mostrou os apontamentos a Andrea Serge e, juntos, rodaram Indebito. Os concertos que veremos em Portugal, onde Capossela será acompanhado por uma banda greco-italiana em que encontramos o supracitado Manolis Pappos e em que acordeões, órgão Farfisa ou contrabaixo se unem a bouzoukis, harmónium, guitarra e percussão, serão resultado directo dessa experiência: o fascínio pela descoberta do rebetiko, da sua cultura e dos seus praticantes hoje, e a força que emana ainda desta música num momento conturbado da história grega e europeia. “Esperamos ter connosco a guitarra portuguesa do Ricardo Parreira, para que possamos completar, juntos, a honra dos P.I.G.S.”

Pratos partidos

Rebetiko Gymnastas é, então, tanto uma homenagem quanto uma viagem musical. Um disco através do qual se pretende mostrar a cultura como algo maior, melhor, do que as vistas curtas do “financeirismo” (aspas nossas) que atropela tudo o que não tiver etiquetado um valor de mercado. O rebetiko “é uma música cheia de orgulho, de resistência”, diz o cantor. “A crise não é só económica, é sobretudo de identidade. O que resta de nós próprios quando se acaba o dinheiro?”, questiona Capossela. “Uma rapariga disse-nos [na Grécia]: ‘Escuto o rebetiko porque me traz à lembrança que alguém, antes de nós, já viveu com dificuldades, e que sentiu orgulho, e isso dá-me força. Prefiro sentir raiva do que sentir medo’. O rebetiko evoca um estilo de vida, algo de que precisamos: escolher como queremos ser feitos”. 

Capossela escolhe uma geografia. Rebetiko Gymnastas é tocado em grego, mas as suas fronteiras alargam-se. Além das versões helénicas das suas canções, ouvem-se no álbum clássicos latino-americanos outrora cantados pela argentina Mercedes Sosa (Canciòn de las simples cosas), balançamos numa Morna adaptada de Cabo Verde e seguimos os melismas dessa Misirlou vinda do Egipto e que foi vertida em canção grega, árabe, judia ou rock’n’roll (Dick Dale gravou-a em 1962 e acabou por vê-la imortalizada na banda sonora de Pulp Fiction).

“O fio que liga estas músicas é a ausência”, explica. “São a dor sublimada. O buzouki, a guitarra portuguesa, o bandoneón, são como um bisturi, lâminas afiadas que sabem recortar a alma e transformá-la numa renda. São músicas que reactivam as contas com a vida. Que obrigam a fumar. Que nos fazem sentir em suspensão por cima da ampla ressaca que se forma entre a vida e a morte. As canções deste tipo de música não têm medo da morte. São serenata à morte.”

Vinicio Capossela, máscara de minotauro tapando-lhe a face barbuda (vimo-lo assim em anterior passagem por Portugal), apaixonado pelas mitologias fundadoras do Mediterrâneo, italiano nascido em Hannover em 1965, crescido na região de Emilia-Romagna (Norte de Itália, capital Bolonha), é um romântico curioso e um viajante incansável. Um homem deste tempo que despreza a velocidade castradora a que tudo acontece e a soberba de quem faz tábua rasa do passado para viver um eterno presente de reality-show. Como o mundo da cultura pop é marcadamente “anglo-cêntrico”, costuma ser apresentado com “o Tom Waits italiano”. Sendo redutor, é verdade que partilha com o americano a idiossincrasia da abordagem musical, a forma como extrai uma voz própria da combinação, nunca evidente, entre blues, jazz, tango, rock, canções italianas e da América do Sul.

Capossela regressa então a Portugal para um concerto de resistência. “Simples, para ser tocado sentado”. Um concerto assim: “Acontecerão exercícios de ginástica e algum cigarro será fumado até ao filtro. Vou usar o casaco vestido com uma só manga enfiada, vou pôr alguns chapéus na cabeça, alguns pratos serão partidos, vai haver algum canto de sereia”. Amarremo-nos às cadeiras para nos libertarmos depois.

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