O novo som dos velhos Beatles

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Todos os álbuns britânicos e uma colectânea de singles. A música dos Beatles remasterizada, duas décadas depois da primeira edição em CD. Fomos a Abbey Road ouvir a novidade.

Allan Rouse não ouve Beatles em casa e não tem uma única das suas canções no iPod. No entanto, é este engenheiro de som, a trabalhar em Abbey Road desde 1971, que guia o Ípsilon pelas novidades "Beatlescas" que se anunciam para a próxima quarta feira. Rouse tem fortes razões para não levar os Beatles para para casa. Afinal, tem-nos ouvido, dia após dia, desde há 18 anos. Em 1991 tornou-se responsável por tudo aquilo que esteja relacionado com o som dos Fab Four. Daí para cá, trabalhou em "Live At The BBC" e na série "Anthology". Colaborou nas edições em DVD de "The Beatles First US Visit" e de "Help" e foi o responsável por "Let It Be... Naked".

Homem de um humor seco, explicará detalhadamente todos os pormenores técnicos relativos ao assunto que levou até Abbey Road os jornalistas que tem perante si. E dirá coisas pouco consentâneas com o tom hiperbólico habitual em encontros promocionais. Coisas como: "Os fãs darão pelas diferenças, o resto do público não". Ou: "Não houve nada de novo para descobrir". Pois bem, Rouse tem razão.
Expliquemo-nos. Dia 9 do 9 de 2009 ("number 9", pois claro, esse que é repetido insistentemente na "Revolution 9" do "White Album"), o catálogo dos Beatles vai ser reeditado. Todos os álbuns britânicos, acrescidos da edição americana de "Magical Mystery Tour" e da colecção de singles "Past Masters", estarão disponíveis individualmente ou numa caixa - e, para os coleccionadores perfeccionistas, haverá uma outra caixa, que reunirá todo aquele material nas misturas em mono originais.

Claro que em toda esta história há um pormenor que fará toda a diferença: os discos foram alvo de remasterização, a primeira desde a edição da discografia dos Beatles em CD, no longínquo ano de 1987. Há muito tempo, portanto. Tempo de mais, diríamos. Allan Rouse concorda. Quando lhe perguntam o porquê de surgirem agora estas reedições, a resposta é encantadoramente simples. "Porque isto precisava de ser feito".

Pois bem, a partir de dia 9, eis os Beatles como nunca os ouvimos - e, de certa forma, os Beatles como nunca os vimos, que é também nesse 9 do 9 de 2009 que será lançado mundialmente "Beatles Rock Band", o jogo que permitirá a qualquer um transformar-se durante um par de horas num John, Paul, George ou Ringo de animação, percorrendo um trajecto que começa na cave do Cavern e acaba algures, especulamos, numa passadeira de Abbey Road.

O Ípsilon não encarnou nenhum dos Fab Four, mas atravessou a famosa passadeira imortalizada na capa do último álbum da banda até à porta dos estúdios em que os Beatles gravaram praticamente tudo o que lhes conhecemos.

Entramos.
No interior da mítica Sala 2, a mais utilizada pela banda mas agora uma porta entre tantas outras dispostas ao longo do corredor, não vislumbramos mais do que um saco cama ocupado por alguém que dorme. O que ali foi gravado há quatro décadas, recuperamo-lo do outro lado do corredor. Sala 3. É ali que Allan Rouse, acompanhado pelos engenheiros de masterização Sean Magee e Steve Rooke, coordena uma breve audição daquilo em que trabalhou nos últimos quatro anos.
Despachemos as questões técnicas. A remasterização foi um processo moroso levado a cabo por uma equipa de sete pessoas. O objectivo era melhorar o mais possível a qualidade sonora das gravações, "mostrando respeito por aqueles que eram, à altura, os desejos dos músicos, produtor e engenheiros", assegura Sean Magee. Allan Rouse:  "Eliminámos falhas étnicas, sibilações e tudo aquilo que não estivesse relacionado com a performance". Por isso mesmo, explica, mantiveram o "chiar" do pedal de Ringo ou os sons da respiração de Lennon ou McCartney, perceptíveis nos primeiros álbuns - "se os tirássemos, algo seria roubado à música", explica Rouse.

O que ficou, então? Ficam as canções de sempre com um novo som, mais preenchido, mais nítido, mais límpido. Em "Taxman", os pratos rugem e o baixo de McCartney ocupa todo o espaço sonoro. Em "Eight days a week", parece-nos agora que a guitarra de Harrison e as palmas que marcam o ritmo estão coladas aos nossos ouvidos, próximas como não reparáramos antes. Parece evidente que Allan Rouse e sua equipa fizeram um bom trabalho. Ainda assim, Rouse está céptico. Em determinado momento, confessa o receio de não ver devidamente apreciado aquilo que conseguiram. "Não me estou a queixar, estou a constatar", afirma. Depois, queixa-se: "Temo que ninguém ouça as diferenças. Pelo menos num iPod, que é onde todos ouvem música. Tenho iPod, mas sei a diferença entre ouvir música num e ouvi-la numa boa aparelhagem".

Pouco antes, fôramos apresentados a "Beatles Rock Band". Finda a demonstração, uma jornalista pergunta: "Mas isto é exactamente o quê?". É provável que, por simples contingência etária, ela saiba a diferença entre ouvir estes Beatles num iPod ou numa aparelhagem. Para a geração que cresce com música no computador e iPods nos ouvidos, contudo, será mais provável descobrir os Beatles através desse jogo de consola que ela desconhecia existir - e, convenhamos, Allan Rouse não deverá angustiar-se com isso.

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