De auscultadores para que futuro?

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Para quem ouvia o gramofone no início do século XX, ou a cassete nos anos 80, seria inimaginável este mundo actual de Internet e mp3, de épicos de mil instrumentos criados num apartamento. O futuro da música - o nosso futuro como ouvintes, portanto, de iPod no bolso, "phones" na cabeça, dez ou 20 CD para ocasiões especiais - nunca foi tão imprevisível como agora. E não começa só daqui a 104 dias, quando entrarmos em 2010: já começou. Vai valer tudo, até ressuscitar a cassete.

Eis-nos numa sumptuosa casa parisiense, em plenos Campos Elísios. Uma orquestra toca num salão, animando alguns dos convivas. Não todos, que há quem prefira ouvir teatro ou ópera noutra divisão, seleccionando o canal que o espírito julgue adequado ao momento, há quem prefira ser senhor total da companhia sonora e, noutra divisão ainda, seleccione o registo que queira ouvir, do princípio ao fim, com as interrupções que julga apropriadas. Relato de hoje, tempo de mil dispositivos e outras tantas plataformas de lazer, de iPhones, iPods, iTunes, Blu-Ray e Surround 5.1? Nem por isso. Relato de uma festa no 202 dos Campos Elísios, mansão de Jacinto de Tormes, personagem principal de "A Cidade e As Serras", romance póstumo de Eça de Queirós, editado em 1901 - esta não parecerá, convenhamos, a forma mais apropriada de iniciar um texto que se pretende sobre o futuro. E, no entanto, avançamos.

A animação na mansão: a orquestra, o Teatrofone ligado por linha telefónica às grandes salas parisienses, o gramofone soltando melodias preservadas em cilindros de cera. O início desta história: a íntima relação entre tecnologia e música. Uma alimentando a outra, conduzindo-a à mudança - quer por aproveitamento, quer por reacção. Resumindo: do gramofone de início do século XX à música feita em Playstation no XXI.
Na viragem de século parisiense em que encontrámos Jacinto, estávamos à beira de uma revolução. Com a possibilidade da gravação, os processos de fruição, criação e interpretação da música transformar-se-iam irremediavelmente. Nessa altura, compositores como John Philip Sousa, catastróficos, anunciaram o fim das cantorias amadoras, caseiras, e o desemprego dos músicos profissionais. Outros, por sua vez, elogiaram a democratização que o invento traria: a música, toda a música, dos cantores populares aos líricos, das grandes orquestras aos pequenos combos, acessível a todos (onde é que já ouvimos isto, e recentemente?).

Como sabemos, o apocalipse de Sousa não se concretizou. Como sabemos, a democratização tornou-se realidade - e a necessidade de adaptação ao modo "democrático" não demorou a fazer-se sentir. A trompete de Louis Armstrong e os metais das bandas jazz, tornaram-se quase omnipresentes: ultrapassavam com o seu poder estridente as limitações do gramofone que era, por exemplo, pouco dado às subtilezas das cordas de uma orquestra - problema que não se punha, outro exemplo, com as gravações do tenor Enrico Caruso, cuja voz ampla e poderosa, captada e amplificada de uma forma única, o transformou numa das primeiras estrelas da alvorada da música gravada.
Naquele período, maestros empalideceram ao ouvir, nas gravações de ensaios e de concertos, incorrecções de que nunca se tinham apercebido.

Os violinistas passaram a usar mais assiduamente o "vibrato", até então recurso esporádico, dado que o som assim produzido dava, nas gravações, outro peso à sua presença, e os dadaístas, vendo mais longe, utilizaram os gramofones não como emissores, mas como instrumentos de criação musical. Quais proto-DJs vanguardistas, organizaram sessões em que ligavam vários gramofones em simultâneo e em diferentes velocidades, procurando descobrir na música novos sentidos - tudo isto é explicado por Alex Ross, crítico de música da "New Yorker", num artigo, publicado em Junho de 2005, sobre "Capturing Sound: How Technology Has Changed Music" (University Of California Press, 2004), o livro de Mark Katz.

Imersos em som

"Fast-forward" até 2009. Para os inventores de inícios do século XX, seria inimaginável isto que agora temos: tanto mundo imaterial e tudo passível de ser utilizado para a criação musical - de resto, a partir do momento em que John Cage compôs o famoso "4'33"", no longínquo ano de 1952, instaurando o silêncio e o som ambiente como música, ficámos com todo um espaço, imenso, infinito, para preencher. Para os habitantes do início do século XX, prosseguimos, inimagináveis a Internet e as consolas, inimaginável a Torre de Babel que é toda a música de todos os tempos tão facilmente disponível. Inimaginável tê-la tão portátil - 20 mil orquestras e 40 mil bandas num aparelho de "oh-tão-poucos-gramas" -, inimaginável a possibilidade de ser um músico megalómano a criar épicos de mil instrumentos no quarto de um apartamento. Entre tudo isto, porém, algo se mantém inalterável: a forma como a tecnologia ajuda a moldar e a transformar a música que é criada, no início deste século como no início (e no meio, e no fim) do anterior. Diferença substancial: neste momento, as transformações sucedem-se ao ritmo dos "upgrades informáticos" - ou seja, a velocidade supersónica - e manifestam-se de forma múltipla.

Olhemos, por exemplo, para alguém como Andrew Bird. É uma manifestação do seu tempo. A forma como actua ao vivo rege-se por um princípio antigo, desenvolvido por pioneiros como Edgard Varèse ou Stockhausen, e que, por exemplo, o guitarrista Robert Fripp aproveitaria mais tarde, ao criar, no início dos anos 1970, o processo a que chamou Frippertronics: utilizando dois gravadores de fita, gravava, reproduzia e sobrepunha em tempo real várias linhas de guitarra. O que vemos hoje com Andrew Bird, contudo, é essa tecnologia, simplificada para uso massivo (basta um pedal, o loop station), tornar-se elemento comum na música popular dos nossos dias. Manipulando linhas de violino, de guitarra ou melodias de voz em tempo real, Bird, tal como Final Fantasy (Owen Pallett), tal como centenas de músicos mundo fora, cria um novo tipo de interpretação, um novo virtuosismo.

Num momento em que vivemos, como nunca antes, rodeados de som, tudo conta. A facilidade de gravação - possível com um programa razoavelmente barato instalado no computador ou com um mero jogo de Playstation que simule um simplificadíssimo estúdio de gravação - espicaça a criação e os estímulos sonoros constantes criam novos dialectos. Assistimos à transformação de sons de consola em matéria criativa (conferir o grime de Dizzee Rascal), vemos como a música concreta de ontem se transforma na pop de hoje (ouvem-se aspiradores, frequências rádio ou talheres de cozinha nas canções de Micachu & The Shapes). Descobrimos que ferramentas de estúdio utilizadas para esconder deficiências e que, como tal, se mantinham assunto discreto, saltam para plano de destaque e ressurgem como marca identitária: o Auto-Tune, salvador de vozes ou instrumentos desafinados, corrigindo-os electronicamente, é acusado de formatar excessivamente a música mainstream da actualidade, habitada como nunca de timbres estranhamente perfeitos, roboticamente humanos, mas também se tornou a marca de água, devidamente exposta, do rapper T-Pain (na sua ficha na Wikipedia lê-se "instrumento: Auto-Tune") e ponto central do último álbum de Kanye West, "808s & Hearbreak".

Os "miúdos" percebem as diferenças

Paradoxalmente, a evolução tecnológica tem-nos conduzido a um patamar em que a perfeição sonora, a limpidez acústica ou os ínfimos detalhes de produção se tornem quase redundantes. Ouve-se música através de auscultadores em ficheiros mp3, ouve-se  música nas colunas dos computadores. Em Maio, o MC e produtor Xeg dizia ao Ípsilon que não se preocupara em enviar o seu último disco, "Outros Tempos", a um profissional que o misturasse: "90 por cento das pessoas, mesmo que comprem o CD, vão passá-lo para mp3 e ouvi-lo nos 'phones'. É preciso estar assim tão arranjado?", questionou. Há algumas semanas, por sua vez, o engenheiro responsável pela remasterização da discografia dos Beatles, Allan Rouse, queixava-se em Abbey Road que poucos iriam dar uma "verdadeira oportunidade" ao meticuloso trabalho de quatro anos que desenvolvera: "Gostava de pegar num desse miúdos que andam na rua com um iPod e trazê-lo aqui para ouvir as diferenças".

Estamos certos de que os "miúdos" perceberiam as diferenças. De resto, muitos deles terão até em casa uma aparelhagem razoável, com um amplificador razoável e uma colunas razoáveis, e recorrerão a ela de tempos a tempos, qual experiência sazonal, muito prezada, mas que não faz parte da fruição quotidiana de música. Ouviriam os Beatles remasterizados em Abbey Road, com altíssima definição sonora. Depois, regressariam a casa. Pegariam numa guitarra roufenha, utilizariam um programa democraticamente acessível a todos e gravariam umas canções que soariam tão bem no leitor de mp3 quanto na tecnologia de ponta dos estúdios de Allan Rouse. Não é isso que acontece com a música de uns No Age, punks catárticos com queda para melodias deliciosamente trauteáveis em baixa fidelidade, e de uns Wavves, mestres do abandono adolescente em glorioso e ruidoso lo-fi? Olhamos para "Wavves", o primeiro álbum, e vemos o futuro a tomar forma (parece, mas não é, um fantasma do passado): gravaram-no em cassete, um formato que, como reacção à deriva hiper-tecnológica da música no século XXI, tem ressurgido pontualmente. Os Times New Viking foram ainda mais além: depois de experimentarem a cassete, deram o grande salto em frente e gravaram o novo álbum, que sai agora, em VHS.

No início do século, maestros empalideceram ao ouvir as imperfeições das suas orquestras preservadas em cilindros de cera. Em 2009, já ninguém empalidece. Adopta-se a tecnologia, adapta-se a tecnologia, resiste-se à tecnologia. E a música evolui. Em todas as direcções, evolui. Como sempre. Mais freneticamente do que nunca.

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