Pequenos frames entre amigos

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Norberto Lobo

Chama-se Vera Marmelo, é uma melómana com máquina de fotografar. Tem-se chegado muito próximo - são os seus amigos - daqueles que hoje são os protagonistas da música moderna portuguesa. Essas imagens estão nos jornais, nas promoções dos grupos, na internet, nos álbuns... A exposição "Nova Música - Música Nova - Novos Músicos", no Museu da Música em Lisboa, mostra uma selecção.

O mundo é uma rede, a cidade é uma latrina, a música lisboeta é, perdoem a força (escatológica) da expressão, um bidé. "Networking", ou a arte de trabalhar em rede para criar oportunidades, já começa a soar a palavra feia por tanto uso. Mas é mesmo pelo "networking" que se fazem pequenos crimes entre amigos. Ou pequenos "frames" entre amigos, músicos e os conhecidos deles. E não, isto não mete o Facebook (suspiro de alívio).

A exposição "Nova Música - Música Nova - Novos Músicos" -, ontem inaugurada no Museu da Música em Lisboa, é o resultado disso. É a selecção de trabalhos de uma engenheira civil, uma melómana com a máquina de fotografar. Vera Marmelo tem 24 anos e não se cansa de frisar que a mostra é uma selecção subjectiva de fotografias que, nos últimos dois anos e meio e 300 concertos depois, tentam perfilar o que o crítico de música do Ípsilon Mário Lopes não quer apelidar de "cenas" ou "movimentos" musicais - chama-lhes "sobressaltos". E muitos desses protagonistas são os amigos de Vera Marmelo.

Da extinta editora "online" Merzbau ao "boom" da FlorCaveira, passando pela Galeria Zé dos Bois (ZDB), pela Filho Único e pelos concertos no Barreiro no meio do Barreiro Rocks, do Festival BOM, do OUT.Fest, ela não quer admiti-lo mas está a fazê-lo: de forma "inconsciente", "involuntária", o acesso que tem aos Pontos Negros, a Tiago Miranda (Loosers), a B Fachada, a Norberto Lobo ("um génio") e afins protagonistas do rock, do noise, da exploratória, do que está a mexer na música da área metropolitana de Lisboa, permite-lhe ser uma sua cronista visual.
Como num jogo de Monopólio, o rolar dos dados - imagem muito rock 'n' roll clássico - levou-a dos amigos do OUT.Fest barreirense a Tiago Sousa da Merzbau, e dos seus concertos aos dos amigos dos amigos. Era a forma de sair à noite, era a forma de ser o braço visual da música dos amigos.
"Comecei por fotografar esses concertos não pela fotografia mas para acompanhar o que os meus amigos estão a fazer - são músicos e eu não faço música", conta ao Ípsilon em vésperas da inauguração da exposição e dos primeiros concertos. O Museu da Música - ou não fosse esta uma iniciativa no âmbito da "démarche" "Às 5ªs nos Museus" - acolheu ontem à noite um concerto de B Fachada, depois virá Tiago Sousa (2 de Outubro), Jónatas Pires (dia 16) e Tigrala (dia 23). Todos amigos e conhecidos. E fotografados.

Eles já nem a sentem. Têm-na tantas vezes por perto que Vera Marmelo, fotógrafa amadora que só no final do ano passado comprou uma máquina digital - tudo começou em Dezembro de 2006 com uma máquina analógica e rolos fora de prazo -, é parte da família. Voltando ao monopólio, da casa da Merzbau foi para a casa FlorCaveira através de B Fachada, conheceu Tiago Guillul, que conhecia Tiago Sousa dos tempos dos jogos da bola combinados via mIRC (o velhinho chat na Internet), Guillul convidou-a a fotografar a Consoada da FlorCaveira, em Março chegavam os Pontos Negros e, como as meninas más, agora vai com eles para toda a parte.

Mas são sempre momentos entre amigos, o que lhe dá um acesso - ao "backstage", ao "sound-check" (garante: a melhor altura para fotografar um concerto) - incomparável com o dos profissionais que estão restringidos à regra das três músicas (as únicas em que em geral é possível fotografar nos concertos) e à rapidez da vida modernaça, veloz, cansativa, árida.

No início, "ninguém estava preocupado se estávamos a documentar ou não. Eu simplesmente estava lá porque tinha comprado uma máquina e tinha gasto 100 euros em 50 rolos que tinham passado de validade há quatro anos", confessa a cronista acidental. As circunstâncias, como sempre.
Estes músicos, de áreas distintas, perfazem uma parte importante do que se passa hoje no pop-rock português. Sem um passado longo, sem uma história, a sua imagem está também a ser construída na Internet (blogues, webzines, Flickr) pelas imagens de Vera - e também nos jornais, nas promoções dos grupos, nos álbuns. Mas ela não sente, com a habitual ambivalência, que esteja a participar activa e conscientemente nessa construção.
"Não tens essa sensibilidade quando estás a fazer isto. No caso do Norberto [Lobo] sinto muito isso. Acho que só não fotografei o primeiro concerto dele. É bom ver as várias fases, ver as pessoas a crescer. Mas mais no sentido de documentar a vida dos teus amigos como se fossem a tua família" - no campismo, nas férias de Verão, na Consoada... da FlorCaveira.

Há ali trabalho, investimento de tempo (o "day job" de Vera Marmelo é outro) e redes. "É sempre assim: na música, como em todas as outras coisas, as pessoas conhecem-se todas. Está tudo interligado".
Temos a ilusão de estarmos próximos dos ídolos, das bandas sonoras das nossas vidas, dos músicos que tocam aos nossos ouvidos enquanto andamos de autocarro. O realizador de vídeo Vincent Moon fez os seus Take-Away Concerts e agora tem as Fiume Nights para dar conta do andamento da música fora da formatação MTV. Ele luta para desconstruir o mito, para desmistificar os edifícios da música, a espinha prateada da indústria. Vera Marmelo tem a noção de que há todo um imaginário em torno da imagética produzida pelos fotógrafos de música que tomam formas de documentalistas, mas mantém reservas quanto ao seu papel neste filme português. "Vais fazendo estas coisas todas e nada disto é extraordinário - o valor no meio de isto tudo é o de eu estar sempre lá".

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