Era uma vez três rapazes

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José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto apresentam-se pela primeira vez juntos ao vivo naquele que poderá ser o concerto do ano. Com 19 músicos e muitas surpresas, dias 22 e 23 em Lisboa, 31 e 1 no Porto. Eles contam a história

No estúdio, a saudável confusão do costume. Fios e mais fios, microfones, instrumentos desalinhados por opção estratégica, interpelações: "Este está um bocadinho lento". Ou: "Essa começa com um dó". Ou: "Aí é que os sopros atacam! Pensem no Count Basie". Dos vários ensaios do concerto "Três Cantos", que reúne pela primeira vez ao vivo num projecto comum José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, este, o de segunda-feira, é o primeiro aberto parcialmente à imprensa. Explicações, conversas, fotos. Fausto, que ensaiara toda a tarde ausenta-se antes e não fica nas fotografias. Mas está presente, de algum modo, quando os jornalistas entram. Porque a primeira canção a ser ouvida, em vários "takes", é a sua "Rosalinda", repartida entre Sérgio e José Mário, que cantam juntos o refrão: "Rosalinda/ se tu fores à praia/ se tu fores ver o mar..."

É apenas uma das muitas canções que se ouvirão no Campo Pequeno, em Lisboa, a 22 e 23 de Outubro, e no Coliseu do Porto, a 31 e 1 de Novembro. Concertos quase esgotados, mesmo antes de surgirem os primeiros anúncios. Eles preferem não falar delas, não desvendar os segredos do espectáculo para manter a surpresa, mas no ensaio aberto cantam "O charlatão" e ainda "A barca do amantes" e "Guerra e paz", ambas de Sérgio, que, ali ouvida, parece já trazer misturados os estilos dos três. "Como a luz na Primavera/ era uma vez um rapaz/ é vê-lo avançar/ entre a guerra e a paz." Um rapaz? Não, desta vez são três. E esta história é deles: era uma vez três rapazes que um dia...

Mudança e liberdade

José Mário Branco e Sérgio Godinho, ambos nascidos no Porto, o primeiro em 1942 e o segundo em 1945, cruzaram as suas vidas pela primeira vez fora de Portugal, em Paris. José Mário exilara-se em 1963, já passados os 20 anos, idade com que Sérgio Godinho decidiu também mudar de ares para a Suíça. Em 1967, porém, muda-se para Paris, ainda a tempo de apanhar o Maio de 68 e de dar consistência às suas aventuras musicais. Nos discos de estreia, "Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades" e "Sobreviventes", há troca de participações. Sérgio faz "segunda viola, palmas, coros" no disco de José Mário e este garante "piano, xilofone, órgão, viola e coros" no de Sérgio. Assinarão nessa fase seis parcerias, entre as quais "O Charlatão" e "Eh! companheiro". E ficarão por aí.

Por esses anos, em Portugal, Fausto gravava o seu primeiro LP, em 1969. À revelia do pai, que lhe oferecera uma viola com esta advertência: "Música profissional, nunca!". Nascido em 1948, ele, que já ouvia José Afonso, sentiu que havia "algo de importante" nos discos de José Mário e Sérgio quando se estrearam na rádio. Ainda se lembra do que sentiu ao escutar, por exemplo, "Romance de um dia na estrada". Não tardaria a que, pelos acasos da vida, se cruzassem os três em palcos, embora episodicamente.

Em 1974, logo a seguir ao 25 de Abril, com José Mário recém-chegado do exílio e Fausto prestes a lançar o seu segundo álbum, que começara a gravar em Madrid, fizeram os dois parte do Colectivo de Acção Popular, criado na madrugada de 1 de Maio, que pretendia "pôr a actividade musical" ao serviço das enormes transformações sociais e políticas que começavam nesse mês em Portugal. Sérgio só chegou a Portugal mais tarde, mas ainda a tempo do II Encontro Livre da Canção Popular, a 25 de Maio de 1974 no Pavilhão dos Desportos de Lisboa (hoje Carlos Lopes), onde estiveram os três.

Nos anos 1975/76, enquanto José Mário se concentrava no GAC, o que não o impediu de se envolver na peça "Liberdade, Liberdade", no Teatro Villaret, para a qual convidou Sérgio Godinho (e é assim que ele, entretanto regressado ao Canadá, acaba por se fixar de vez em Portugal), Fausto e Sérgio ainda trocaram algumas participações. O primeiro partilha com Sérgio os arranjos e direcção musical de "De pequenino se torce o destino" (é aí que Sérgio grava "O namoro", de Viriato da Cruz, musicado de Fausto) e participa em "Pano Cru" (1978) e "Campolide" (1979). Quanto a Sérgio, participa nos discos de Fausto "Um Beco com Saída" (1975) e "Madrugada dos Trapeiros" (1977).

Só um acaso volta a juntá-los. José Mário Branco, convidado a fazer a banda sonora do filme "A Confederação", de Luís Galvão Telles, chama ambos a compor. Farão, juntos, o "Hino da Confederação", letra de Sérgio, música dele e de Fausto. Na capa do LP, de 1978, como se antecipasse o cartaz de agora, surge o nome dos três com igual destaque.

Identificação grande

Só nos anos 2000 é que voltaram a aproximar-se. No disco "O Irmão do Meio" (2003), de Sérgio, José Mário Branco fez com ele um dueto em "Que força é essa". Em 2004, foi a vez de José Mário convidar Fausto e Sérgio para duetos em canções do seu disco "Resistir é vencer", Fausto no "Canto dos torna-viagem" e Sérgio em "Pão-pão". A participação estendeu-se também aos concertos de apresentação ao vivo do disco.

A ideia de juntar os três já germinava, entretanto, a partir de um primeiro reencontro entre José Mário e Fausto, por volta de 2002. "A ideia original é do Zé Mário", diz Godinho. "Mas vinha de vários sectores, inclusivamente o David Ferreira tinha feito essa proposta na altura em que ainda estava na EMI. Isso é a pré-história."

Mas só em Abril/Maio de 2009 se dá o impulso definitivo. Devido a envolvimento em projectos próprios, Sérgio foi adiando até um dia ser ele a perguntar: "É a altura p'ra todos? Não era se fazia sentido, sentido já fazia antes". E começaram os trabalhos, como explica José Mário: "Começámos a encontrar-nos, a comer e a beber bem: no Museu Nacional do Traje, na casa do Fausto, na do Sérgio e a combinar duas coisas fundamentais: a escolha das canções e do figurino do concerto e a escolha do conjunto de músicos, que também não é evidente, porque desde há 30 ou 40 anos que andamos a tocar com muitos músicos que conhecem a nossa obra." Para se "sentirem confortáveis", todos, a escolha acabou por colocar em palco piano, teclas, baixo, duas baterias, três sopros, percussão, duas guitarras e um coro de oito vozes ("quatro homens e quatro mulheres, para fazer polifonias"). Dezanove pessoas, ao todo. Além dos três, claro.

"Quando veio o sinal do Sérgio, larguei tudo imediatamente", diz José Mário. Fausto, que já dissera que "sim" logo de início, aceitou interromper os trabalhos de composição do terceiro disco da trilogia iniciada com "Por Este Rio Acima", previsto para 2010: "Aderi imediatamente à ideia. Nós fomo-nos cruzando uns com os outros, sobretudo na década de 70, em espectáculos de participação. Não eram propriamente concertos. A ideia deste concerto parte de uma admiração mútua, que existe. Cada um de nós admira e tem apreço pelo trabalho dos outros. Portanto, há uma identificação grande, não só no conteúdo como na forma. Fazemos canções que se aproximam. Um concerto conjunto dá-nos essa possibilidade de um cruzamento das canções e dá-me ao mim o prazer, a enorme satisfação, de tocar muitos dos temas do Sérgio e do Zé Mário, porque gosto."

Filhotes do Zeca

O espectáculo tem uma estrutura variável, com "doze tipos de situações diferentes": duetos com músicos, momentos a solo com músicos, reportório trocado, etc. "Há cantigas com os músicos cantadas pelos três, há outras onde só estamos em palco os três com as nossas três violas", diz José Mário. "E cada um de nós escolheu uma canção de cada um dos outros que quer cantar." São todas deles, à excepção de uma, que é de José Afonso. "Achamos que somos filhotes dele", diz José Mário. "Foi quase consensual. Mas também não é daquelas coisas mais batidas", acrescenta Sérgio. E há um tema inédito, "Faz parte", que começou com música de José Mário. Sérgio acrescentou-a e escreveu a letra. Fausto gostaria de ter participado, mas não conseguiu: "Teria todo o empenho em escrever uma canção com o Zé Mário e o Sérgio mas estou tão embrenhado no meu disco que sair dessa atmosfera para compor outra coisa era, para mim, muito difícil. É que não sou um repentista, a compor rasgo muito papel".

José Mário Branco distingue aquilo que, para ele, é crucial nesta aventura. "O que nos entusiasma é a paixão. Há tardes inteiras que passamos os três que são exaltantes, a apurar as coisas, um acorde mais assim, um acorde mais assado... o Fausto é um brilhante executante de viola, tem um bom gosto..." Sérgio concorda: "Toca mesmo muito bem". José Mário, de novo: "Outra coisa que me deu gozo foi aprender, e é esta a palavra, a tocar e a cantar canções que eu não sabia tocar nem cantar." Sérgio: "Isso é comum, também senti isso. E depois as interpretações tornam-se pessoais, há canções que noutras vozes ganham uma outra leitura auditiva".

"Isto significa também um reencontro", diz por sua vez Fausto. "Passou-se muito tempo em que cada um estava dedicado às suas afinidades, ao seu trabalho." E esse reencontro já deu frutos para o futuro, no caso dele. "Pela primeira vez, depois deste trabalho, vou convidar o Zé Mário Branco a fazer arranjos para mim, já no próximo disco."

No espectáculo, diz Sérgio, "há momentos de coisas muito introspectivas e outros com coisas muito vibrantes. Porque os nossos universos, nesse aspecto, não são radicalmente diferentes." Fausto escolhe outro prisma: "Quando escolhemos o reportório, há canções que não pertencem ao passado, ao presente ou ao futuro, estão nas três dimensões. São coisas que nunca passam. Algumas até ganharam actualidade com o tempo, ficaram cada vez mais actuais." A palavra revivalismo não é mesmo para aqui chamada.

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