Antes da tempestade

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Só queriam editar um disco, integrar-se na cena de Seattle e conhecer a América. Gravaram "Bleach" em vinte horas. Três anos depois, não se limitavam a conhecer o mundo. O mundo era dos Nirvana. Dois momentos ilustrados pela reedição de "Bleach" e pelo DVD "Live At Reading".

Nem era bem serem recusados. Eram ignorados. Copiavam centenas de maquetas, nas quais colavam autocolantes com o nome da banda e o alinhamento, colavam os selos nos envelopes e lá seguiam elas. Para a Touch & Go, a editora dos Big Black, para a K Records de Calvin Johnson, a editora indie de Washington DC, para toda e qualquer editora que acolhesse bandas que os Nirvana admirassem, qualquer uma que os pudesse editar, tirá-los de Aberdeen e dar-lhes a conhecer a América - esse país que, presos numa pequena cidade de um estado periférico, não conheciam.

"Estamos dispostos a pagar a maioria da prensagem de mil cópias do nosso LP, bem como todos os custos de gravação", escreveu Cobain numa carta à Touch & Go, ano 1988, segundo um artigo publicado na edição de Janeiro de 2005 da revista "Mojo". Na volta do correio, nada. Nova carta: "Será que poderiam, por favor, dar-nos uma resposta de ‘vão-se foder', ou ‘não estamos interessados', de forma a não desperdiçarmos mais dinheiro a enviar maquetas?" A resposta chegaria, mas não da Touch & Go. Arriscou a Sub Pop, a agora mítica editora de Seattle, que acolheu os Nirvana como banda de segunda linha. Afinal, tinha no seu catálogo os Mudhoney, reis do rock'n'roll de Seattle, ou os Tad, onde cabiam ecos de Black Sabbath, zumbidos industriais e terror de série B. Neste contexto, os desconhecidos Nirvana de Kurt Cobain, Kris Novoselic e do baterista Chad Channing não passavam de aposta de risco pouco elevado para uma editora independente. Afinal, ela mesma arcaria com os custos de gravação daquele que seria o seu primeiro álbum - o preço foi inscrito no próprio disco: 600 dólares.

Gravado em vinte horas, com produção de Jack Endino, "Bleach" teve como primeiro título "Too Many Humans" - o que seria apropriado para um disco onde figuram canções feitas de frustração e alienação como "School", "Negative creep" ou "Downer".

Cobain diria mais tarde que escreveu as letras no caminho para o estúdio e, mesmo que tal não passe de auto mitificação, a verdade é que a música gravada naquele Dezembro de 1988 reflecte essa espontaneidade. "Bleach" é o quadro de um momento: o primeiro álbum de uma banda que, imersa no caldeirão "underground" de Seattle sem lhe pertencer (eram da pequena cidade de Aberdeen), reflectiu de forma magistral essa condição. Estão lá as marcas do rock'n'roll que vivia do confronto cerrado com o "mainstream", alimentado pelas expressões marginais da música e cultura popular - o punk e o metal, os "cartoons" a preto e branco das "fanzines" -, mas também a marca distintiva que se revelaria definitivamente pouco depois daquela apressada gravação.

Editado a 13 de Junho de 1989, "Bleach" cresceu lentamente. Inicialmente ignorado, já era em meados de 1990 um dos mais bem-sucedidos álbuns de estreia por uma editora independente. No final desse ano, os Nirvana assinavam por uma multinacional, a Geffen. Tudo mudara - e agora, a edição paralela da versão remasterizada de "Bleach" e do DVD "Live At Reading", mostra-nos quanto.

O jogo do estrelato

Tudo mudara, repetimos. Em 1991, "Nevermind" chegou como um furacão. Não foi um acaso. Os Nirvana sabiam o que faziam. Tinham encontrado em Dave Grohl o baterista perfeito para a sua música, tinham trabalhado com um produtor, Butch Vig, que os conduziu na gravação de um disco onde as harmonias pop e a limpidez da produção se conjugavam admiravelmente com o carácter visceral das letras, com a violência de "Stay away" ou "Territorial pissings". Tinham até criado uma canção que seria erguida a hino da Geração X: "here we are now entertain us".

A banda que só queria ser de Seattle já não representava apenas a cidade do noroeste americano. Tinha destronado "Dangerous", de Michael Jackson, do topo das tabelas e transformado o "hair rock" de Def Leppard, Aerosmith e afins em anacronismo. Destronadas as estrelas do passado, os Nirvana tornaram-se as estrelas do presente - mas conviveram com os mesmos mecanismos mediáticos. A diferença é que tentaram desconstruir o artifício daquele endeusamento que apropria a diferença até a transformar em banalidade.

Quando actuaram no Top Of The Pops, foi-lhes exigido um "playback" - contrapuseram com um "playback" parcial. Ouviram-se os instrumentos da versão de estúdio de "Smells like teen spirit", ouviu-se a voz de Cobain, no palco do mais famoso programa musical televisivo britânico, a cantar em voz operática destroçada, desafinada, versos como "load up on drugs / kill your friends" - e os espectadores viram um trio a movimentar-se em palco como marionetas. Pela mesma altura, convidados para um programa familiar, ainda em Inglaterra, ouviu-se o apresentador anunciar ao público de senhores e senhoras de meia-idade os Nirvana e o seu novo single, "Come as you are". Acto contínuo, a banda atira-se a uma feroz interpretação de "Territorial pissings", a mais curta e mais agressiva canção de "Nevermind", culminada com a destruição dos instrumentos em palco.

Em Agosto de 1992, depois de ganharem dois prémios MTV, depois da distinção de "Nevermind" como álbum do ano nas mais diversas publicações, depois do casamento de Cobain com Courtney Love e do início do inevitável tratamento "Yoko Ono" que esta sofreria, chegaria o culminar de todo este meteórico crescimento.

Os Nirvana como cabeças de cartaz de Reading um dos maiores festivais de Verão europeus, encabeçando um alinhamento que apresentava antes deles os históricos Nick Cave e Beastie Boys, os amigos Mudhoney, Melvins e Screaming Trees, os perfeitos Pavement, as "riot grrls" L7, os artesãos pop Teenage Fanclub e a piada Björn Again.

Kurt Cobain entra em palco de cadeira de rodas, bata hospitalar e longa cabeleira loura. Ergue-se com dificuldade. Canta um verso e estatela-se no chão. Acaba o teatro. A primeira canção do alinhamento é "Bleed", a que abrira "Bleach". A última, antes da destruição dos instrumentos, será "Territorial pissings".

Estavam centenas de milhar à sua frente e os Nirvana jogavam de acordo com as suas regras. Dominavam a situação com mestria. Até ali, tudo perfeito. O caos seguir-se-ia dentro de momentos.

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