M.I.A. Amor, ódio, indiferença é que não

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Ao Sudoeste, a inglesa que nunca esquece os conflitos no território de origem dos pais, o Sri Lanka, chega na quinta-feira - nela tudo se confunde: a música, o estilo, a política; em poucos anos transformou-se num ícone, que há quem ame e quem odeie, como se constata pela recepção ao último álbum, Maya.

Estar nas margens é fácil. É o centro que gera divisões. E M.I.A., ou seja Maya Arulpragasam, 34 anos, nunca escondeu que queria estar no centro dos acontecimentos. É aí que ela está hoje. Não mudou muito nos últimos anos. Mas o contexto alterou-se. Hoje recolhe os dividendos, e os malefícios, da notoriedade. Tudo aquilo que faz é alvo de centenas de leituras. É esse o preço a pagar por quem quer comunicar com uma audiência universal. Tudo o que M.I.A. faz polariza opiniões. Está a acontecer com o seu novo álbum, "Maya". Aconteceu há meses com o vídeo de "Born Free". Acontece com as suas posições políticas.
Acaba de acontecer com um longo artigo no "New York Times", onde é acusada de ser pouco autêntica, uma artista com uma agenda pré-determinada.

O artigo causou polémica. Mas não continha nada de novo. O seu primeiro videoclip, de 2005, "Sunshowers", encerrava um imaginário político (bombas, tanques, simulacros de guerrilheiros), e logo aí os críticos argumentaram que era uma revolucionária chique uma artista que estetizava lutas distantes com cores exóticas.
Desde o primeiro momento que a polémica vem ter com ela. É natural.
A sua música e a sua atitude contêm os ingredientes que nos levam a questionar dicotomias em grande parte irresolúveis (público minoritário vs. massas, autenticidade vs. fabricação, imitação vs. originalidade, Ocidente vs. Oriente).

Nascida em Londres, foi aos seis meses na companhia da mãe e dos irmãos para o Sri Lanka, onde permaneceu dez anos. Iam atrás do pai, Arular (nome do seu álbum de estreia em 2005), um dos arquitectos da EROS, célula com ligações aos Tigres Tamil, um grupo de guerrilha formado nos anos 70 que mantém um conflito armado com a maioria cingalesa que domina o território.

M.I.A. acabou por nunca se cruzar com ele. No regresso à Europa, foi parar ao Sul de Londres, uma zona mestiça, rica musicalmente. Em casa ouvia Michael Jackson ou hip-hop.

Nas ruas era gozada. Chamavam-lhe "paki". No final da adolescência, entrou na reputada Saint Martins School de Londres. Formou-se em cinema. Distinguiu-se nas artes plásticas. Acabou na música.
Depois s de assinar pela XL Recordings (Vampire Weekend, Radiohead ou The xx), lançou o álbum de estreia e nunca mais parou. A iconografia tamil que recriou nas suas imagens, o visual exótico e o trabalho gráfico que ela própria concebeu contribuíram para o impacto. Mas foi a música que a projectou, articulação de balanço digital, batidas gordurosas, climas exóticos e electrónica encardida, inspirada em linguagens urbanas emergentes (dancehall, baile funk ou grime), tudo exposto num vocabulário pop.

Dois anos depois, em 2007, veio "Kala" (o nome da mãe), outra obra magnífica. Nesses dois discos impunha um novo paradigma, resgatando linguagens anteriormente depreciadas e fazendo-as coincidir num corpo pop. De Santigold aos Buraka Som Sistema, dos The Very Best aos Major Lazer, todos acabaram por beneficiar do seu êxito.

Cidadã do mundo

No início foi essencialmente na Internet que se percebeu o seu alcance.
Como os Clash no período póspunk ou os Massive Attack na alvorada dos anos 90, foi capaz de criar uma sonoridade nova e refrescante.
Os Clash agregavam rock com dub ou reggae e os Massive cruzavam hip-hop com soul ou dub. M.I.A. fez o mesmo, criando uma nova síntese de sons urbanos (dancehall, baile funk, dubstep ou kuduro) com ritmos comunitários e sedução pop.

Em 2007, quando passou pelo festival Paredes de Coura, era ainda uma figura de culto. A chegada às massas, em particular ao gigante mercado americano, acabou por acontecer através de "Paper planes", canção retirada do álbum "Kala" que acabou na banda-sonora do filme "Quem Quer Ser Bilionário?", vencedor dos Oscars em 2008.

Depois do sucesso global desse tema, sediou-se em Los Angeles e nos Grammys de 2009, dias antes de o filho (resultante da relação com Ben Bronfman, filho do principal responsável pela multinacional Warner) nascer, actuou ao lado de Jay-Z ou Kanye West numa muita badalada prestação que correu mundo, pelo seu avançado estado de gravidez.
Pelo meio formou uma editora, a NEET Recordings, que agrupa projectos descobertos por ela e que são em simultâneo alguns dos mais excitantes da actualidade: Sleigh Bells, NguzuNguzu, Blaqstarr ou a jovem cantora Rye Rye, que actuará também no Sudoeste.

Se fosse necessário aquilatar do seu impacto bastaria consultar os balanços da década que se realizaram no final do ano passado. Aí ficou claro que se transformou num ícone, alguém que personifica o nosso tempo, uma rapariga em trânsito pelo mundo, criando permutas entre linguagens desqualificadas e códigos de arte pop.

Tratamento de choque

Naturalmente, existia muita expectativa em perceber o que iria fazer com o novo álbum. "Maya" surpreende por ser um álbum livre de compromissos, movendo-se entre canções dançantes e lúdicas e momentos de catarse distorcida e claustrofóbica. Não tem o mesmo sabor de novidade, mas é até o seu registo mais arrojado. Há convidados repetentes na produção (Diplo ou Switch), mas também algumas novidades, como o inglês Rusko, Derek E Miller (dos Sleigh Bells) e Blaqstrarr.

Tematicamente, é um disco centrado nas convulsões da Internet, no facto de aquilo que ainda é vislumbrado por muitos como sendo um espaço de liberdade estar a ser cada vez mais controlado por multinacionais ou governos. "É irónico que o Google se tenha comovido quando foi censurado na China e depois censure vídeos que expõem um prisma criativo", acusa ela. "Vimos Saddam Hussein a ser enforcado. Vimos tropas do Sri Lanka a torturarem e a mutilarem pessoas em vídeos horrendos no YouTube. Mas, quando se trata de arte, censuram-na." O vídeo do primeiro single causou polémica. A canção "Born free", concebida à volta de uma amostra de som retirada de "Ghost rider" dos Suicide (vale a pena ver no YouTube a recente apresentação no programa de TV de David Letterman, em que ela surge acompanhada por dez clones e Martin Rev, dos Suicide), foi alvo de um tratamento de choque por da parte do realizador Romain Gavras, que já havia estado envolto em polémica com outro teledisco, "Stress" (2008), dos Justice.

O vídeo coloca em cena soldados americanos que forçam prisioneiros a correr num campo minado, enquanto um rapaz é executado à queimaroupa e outro é atingido no corpo, desfazendo-se. São nove minutos, crus e violentos, que levaram o You-Tube a retirá-lo da sua plataforma. Mas o efeito de propagação viral já tinha seguido o seu curso com debates acesos um pouco por todo o lado.

Metáfora sobre a condição de refugiado.

Arte estilizada para ser consumida em massa. Reacção à sua relação conflituosa com os EUA tem tido problemas burocratas fronteiriços com o estado americano, que a própria diz estarem ligados ao facto de ser vista como incómoda por denunciar aquilo que considera ser o "extermínio dos tamil" no Sri Lanka.
As mais diversas interpretações fizeram-se ouvir. M.I.A. reagiu assim: "Uns meses antes, um vídeo de uma execução, em grande plano, com proveniência do Sri Lanka, aterrou na Internet. Um soldado filmou a execução com um portátil. Passou nos noticiários, não para ser interrogado o seu conteúdo, mas para se analisar se era um vídeo real ou forjado. Depois de ter feito sair o meu videoclip e de toda a polémica que causou, interrogo-me: como é que um vídeo desses pode passar perante a indiferença geral e uma ficção pode provocar tal reacção?"

Em guerra com o mundo

"Maya" expõe desejos contraditórios e é a própria a reconhecê-lo: "Quero ter sucesso, não quero ter sucesso. Quero deixar a América, não quero deixar a América. É natural que a música acabe por ser bipolar." Os seus detractores têm razão. Ela é contraditória. Todos os são, no patamar onde ela actualmente se encontra. No recente artigo do "New York Times", a jornalista Lynn Hirschberg tentou mostrar todas as possíveis antinomias da vida de M.I.A.: o activismo político e a vida desafogada, o desejo de chegar ao maior número de pessoas e a integridade artística.

Conciliar os contrários é o sonho de todos. Mas um sonho que poucos alcançam. Depois da publicação da peça, a cantora reagiu como uma adolescente zangada, colocando o número de telemóvel da jornalista na Internet, mas conseguiu que o jornal publicasse uma nota de desculpa, referindo que havia incorrecções no texto. Como canta em "Lovalot", ela luta com os que a desafiam.

No fim de contas, o fascínio sobre ela reside também nessa forma inflamada de estar. Por vezes revela alguma ingenuidade, é desbocada, apaixonada. Um furacão de emoções e ideias. Uma rapariga capaz de nos devolver no seu último álbum a vibração de existir, mas também as frustrações, através de um som ruidoso e industrial.

Claro que a cultura rock mais retrógrada ainda tem dificuldade em aceitá-la. E não é apenas pela atitude. Muitos não entendem o sucesso de alguém que não tem problemas em dizer que não toca um único instrumento mas que tem a incrível capacidade de canalizar tudo à sua volta para a música ou que não se revê na forma como a maior parte dos grupos actua ao vivo, optando por ter em palco um DJ, um baterista e algumas bailarinas.

Sempre existiram detractores de M.I.A. Agora são mais. Mas agora também há mais admiradores. Vão-se encontrar todos no festival Sudoeste porque, independentemente do que possamos pensar sobre ela, já ninguém lhe é indiferente. Afinal, ela agora está no centro.

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