Os Açores estão vivos no reino da Dinamarca

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Karólína Thorarensen

É o disco-cometa deste final do ano: depois de dar os primeiros passos com o projecto O Experimentar Na M'Incomoda, Pedro Lucas reincide no cruzamento da música tradicional açoriana com a electro-acústica e sai-se com um monumento, um disco absolutamente extraordinário em que brilha a estupenda voz de Carlos Medeiros

Fez este Verão um ano, encontrámo-nos em Sines com um rapaz açoriano chamado Pedro Lucas para conversar sobre o projecto que ele guiava, O Experimentar Na M'Incomoda. Não foi uma conversa fácil: na noite anterior eles tinham tocado a horas tardias no Festival de Músicas do Mundo e estavam cansados. Mas era imperioso chegar à fala com Lucas, porque o disco que lançara em Novembro de 2010 era um caso raro: um cruzamento de música tradicional dos Açores, de onde Lucas é natural, com electrónica. O feito residia em serem raros os momentos em que a tradição e a electrónica pareciam planetas de galáxias diferentes.

Ano e meio depois, é ainda mais necessário falar com Lucas, porque 2: Sagrado e Profano, segundo tomo do projecto que viu o seu nome encurtado para O Experimentar, é um espanto: agora a tradição e a electrónica juntam-se a mais instrumentos acústicos e o disco cria todo um universo só seu, onde passado, presente e futuro se fundem no agora.

A conversa é por isso diferente: não estamos a trocar palavras com um rapaz ambicioso, mas com o autor de um disco fenomenal. Não estamos sob o sol de Sines, a lutar contra ressacas e sono, mas ao telefone de Lisboa para Copenhaga, onde Lucas reside.

"Sou barman aqui", conta o músico, que além de criar cocktails à noite está "a acabar uma licenciatura em estudos artísticos na Universidade Aberta"; faz os exames na embaixada portuguesa. Lucas gosta de Copenhaga: o trabalho no bar "dá para viver e deu para pagar a produção de Sagrado e Profano. "Se tivesse este tipo de trabalho em Lisboa", diz, "vivia sem nada". É isto a nova tradição: as condições económicas determinam que seja mais fácil fazer um disco que parte de recolhas dos Açores a partir da Dinamarca e a trabalhar num bar do que a viver no seu próprio país.

A arte não foi a primeira escolha de Lucas. "Como muita gente da minha geração, andei perdido por algumas universidades e cursos durante dois anos", admite. Tem um certo interesse por engenhocas, o que talvez explique que a determinado momento tenha dado por si na belíssima cidade de Aveiro, a lidar com esse valente pincel que é uma licenciatura em Engenharia Física. Acabou na Restart, em Lisboa, onde fez Produção e Marketing primeir e, depois, aproximando-se do universo que verdadeiramente lhe interessa, Som. Trabalhou na editora Transformadores e no início do clube nocturno Musicbox, pelo meio voltou aos Açores e ao fim de algum tempo na terra apeteceu-lhe sair - como tinha um amigo em Copenhaga, instalou-se lá.

Foi entre lá e cá que fez o primeiro álbum, cujo propósito inicial era revisitar um disco que quase ninguém conhece, de uma das mais extraordinárias e negligenciadas vozes portuguesas: O Cantar Na M'Incomoda, de Carlos Medeiros, que surge em ambos os discos - embora com mais proeminência neste segundo.

A ideia em si era muito boa: o disco não só é extraordinário como parte de "tradicionais que são muito obscuros", diz-nos Medeiros ao telefone dos Açores, onde residiu a vida inteira, à excepção de um breve período em África. Alguns dos temas do álbum partem de recolhas que o próprio efectuou pelas ilhas do arquipélago. O disco está há muito esgotado: "Foram 1500 exemplares e nunca foi reeditado", algo que não parece preocupar o autor, que assume ser esquivo à exposição pública (quando lhe perguntamos que trabalhos teve antes da sua actual profissão de professor de música, Medeiros pergunta: "Isso importa para alguma coisa?").

O primeiro disco do projecto O Experimentar acabou por não ficar limitado às versões de Medeiros (houve canções tradicionais de outras origens que acabaram na edição final), e, olhando para trás, Lucas vê-lhe defeitos: "Era muito: isto é um dub, aquilo é um hip-hop." Neste, inspirado pelas potencialidades de tocar ao vivo, "não queria que as referências [ficassem] tão claras: queria uma coisa mais orgânica, que pudesse ser tocada ao vivo".

A principal fonte de trabalho de Lucas foram "quatro CD de recolhas" de música tradicional açoriana realizadas em 1956 por Artur Santos - os CD, conta, foram-lhe oferecidos por Carlos Medeiros. "O Artur Santos era o Giacometti do Estado Novo", explica Lucas. "Era o recolector oficial do Estado."

Quase toda a música que surge em Sagrado e Profano parte dessa recolha - são lamentos em tons menores, lentos e arrastados. É difícil dizer se captam "uma alma açoriana"; Carlos Medeiros diz que "isto nos Açores não é só desgraça, há pessoas que vivem em tons maiores, há quadras eróticas sobre velhas, há mal-dizer, há escárnio; mas as canções mais conhecidas - como Os olhos pretos - são lentas e em tons menores". Quando lhe perguntamos se há alguma razão para isso, afirma, a rir, que a resposta "já entra no bruxedo": "Dizem que é do mar, das nuvens, dos vulcões." Já a Lucas esta questão não interessa muito, pelo menos de forma directa: escolheu os samples "por razões estritamente musicais; só à vigésima audição é que reparava no que estava a ser cantado".

Uma canção açoriana?

Talvez seja isso que torna Sagrado e Profano um disco maravilhoso: não é uma homenagem; não é uma tentativa de reavivar uma tradição; não é uma tentativa de fazer fusão; não há "géneros" electrónicos em diálogo: é como se um lamento muito antigo, eterno, universal, viesse encontrar o presente.

Não é por acaso que usamos a palavra lamento: "A recolha a que tive acesso está dividida por temas e há um CD que é de coisas religiosas; foi por aí que a recolha começou a chamar-me a atenção e foram esses temas que usei mais", conta Lucas, que admite não ter feito uma recolha muito extensa: "Sou um bocado preguiçoso. Por vezes ando à procura em livrarias de recolhas, como o Centro de Conhecimento dos Açores, a cujo acervo só se pode aceder dentro do edifício - cheguei a mandar uns mails para aceder a partir da Dinamarca, a que ninguém me respondeu. Mas por norma, se encontro o que preciso, não vou mais longe."

Uma das decisões que Lucas tomou para este disco foi não embelezar o que na sua essência não é certinho nem é bonitinho. O disco é "cheio", no sentido em que sintetizadores, um órgão Hammond e uma viola caipira o povoam e não deixam as vozes (sampladas ou regravadas por Carlos Medeiros, Zeca Medeiros e Miguel Machete) pairarem no vazio. A mistura de instrumentos que Lucas usa é sintomática do que aqui se passa, dos diferentes tempos que convivem em Sagrado e Profano; o tratamento que deu aos instrumentos idem: "Com os sintetizadores, por exemplo: queria que tivessem mais grão do que por norma têm. Mais vida, mais textura. Por isso gravei-os para fita magnética e depois é que os passei para PC. É um bocado a escola do [produtor de hip-hop] Gonjasufi."

A mesma opção foi feita em relação ao "tempo": as melodias originais não têm tempo certo; quem as canta acentua agora um tempo, depois outro. "Os PC actuais encaixam os tempos todos, põem-nos todos certos. Tudo que na faixa estiver fora do tempo o PC põe no tempo certo de modo a encaixar as batidas", explica. Lutou contra isso. Podemos achar que o fez por respeito à tradição; ele diz que foi "buscar a escola do J Dilla, dos Sa Ra e do Flying Lotus, que usam os tempos marados dos samples originais".

De novo, a opção foi ter "vida", por oposição a ter tudo "certinho". As ambiguidades técnicas continuam: numa ou noutra faixa, Lucas admite ter usado o Auto-Tune, esse instrumento de afinação melódica que no hip-hop é usado até à exaustão (ou, no caso dos singles de Cher, até à repulsa) - mas "só um bocadinho". "Gosto de uma pequena afinação e havia faixas [de tradicionais] em que as vozes estavam completamente desafinadas", justifica.

A ideia era que o "o disco não ficasse quadrado", que mantivesse "a genuinidade da interpretação", mas que não soasse completamente ao lado.

A forma como a restante instrumentação surge é também paradigmática da galáxia única que Sagrado e Profano ocupa: a viola caipira, que Carlos Medeiros diz não saber o que é, foi uma ideia de Pedro Gaspar, músico da banda.

Lucas vai montando os temas a partir de um sample - com guitarras eléctricas, sintetizadores e "muitas horas em frente ao PC, a tirar e pôr partes". Depois manda por mail o que faz a Gaspar, que acrescenta partes. Nicolaj Hoi contribui com o órgao Hammond, um instrumento a milhas da música tradicional, a milhas do universo electrónico, mas que encorpa o instrumental. Lucas conheceu-o porque Nicolaj gosta dos seus cocktails.

Quando Carlos Medeiros, cuja voz enche todo o disco, recebeu as faixas, elas já estavam completas. Medeiros diz não saber se há uma canção açoriana ou porque é que as canções recolhidas por Artur Santos (ou as que ele próprio recolheu, de gravador em punho, pelas ilhas dos Açores) são como são. O professor de música, que faz parte do Trio Fragata, que faz improviso livre electro-acústico em tempo real, diz que gostava de ter feito um disco como Sagrado e Profano em 1998, quando gravou O Cantar Na M'Incomoda. Não tem planos de voltar a gravar, o que é um crime. Lucas anda a tentar convencê-lo. Mas, diz Medeiros, "ele faz tudo muito depressa: chega aqui [aos Açores] e nuns dias grava tudo".

É verdade, Lucas faz as coisas depressa: aos 27 anos já fez um disco absolutamente extraordinário. A seguir, se convencer Medeiros a registar de novo a voz num disco em nome próprio, ascenderá à condição de santo milagreiro.

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