Os caçadores de sons que nos dão a ouvir Portugal

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Depois do vazio pós-Michel Giacometti, há de novo muitos interessados em gravar o som que o país faz. Das matas às zonas ribeirinhas, das aldeias às cidades, do Barreiro a São Pedro do Sul

Luís Antero vendou o público e pô-lo a ouvir, apenas a ouvir. O público ouviu formigas e a água do rio. Ouviu moinhos, histórias de vida de aldeões, ovelhas e chocalhos. Ouviu o sino da Igreja de Nossa Senhora da Graça de Palhais, no Barreiro, captado em tempo real com microfones colocados junto à porta do templo onde aconteceu esse “concerto para olhos vendados” integrado no festival Out.Fest de 2012.

Foi no Barreiro que Luís passou parte importante dos últimos dois anos, sempre munido de microfones e gravadores. Gravou sons do Sapal de Coina, da Mata da Machada e da frente ribeirinha do parque industrial do concelho para o projecto Sons do Arco Ribeirinho Sul, uma encomenda da associação cultural Out.Ra (a produtora do Out.Fest) que será desvendada amanhã, às 16h, no Auditório Municipal Augusto Cabrita, com uma exposição, patente até 30 de Março, e um documentário. 

O arquivo de sons gravados por Luís e Paulo Raposo estará disponível na Internet no fim da exposição, que será assinalado a 28 de Março, no Augusto Cabrita, com um novo concerto para olhos vendados, desta vez inteiramente preenchido por sons do Barreiro. A Out.Ra tem “esperança” que “barreirenses amadores” possam, depois, contribuir para o arquivo sonoro, diz Rui Dâmaso, da associação. Natural de Oliveira do Hospital, distrito de Coimbra, onde vive, Luís, que tem actualmente 39 anos, é um dos mais activos portugueses a fazer gravações de campo. Documenta desde 2008 paisagens sonoras, sobretudo a da Beira e a da Serra da Estrela, dos cantares aos sons da natureza. Alguns desses trabalhos deram discos. 

Não está sozinho: nos últimos anos, surgiram novos projectos interessados em gravar o som que o país faz, das matas às zonas ribeirinhas, das aldeias às cidades, preenchendo progressivamente o quase vazio que existia em termos de arquivos sonoros em Portugal. No Porto, guardam-se para a posteridade os sons do centro histórico e faz-se música a partir deles. No final deste mês, em São Pedro do Sul, a Binaural inaugura o Arquivo da Memória dos Vales do Vouga e Paiva.

Um Barreiro desconhecido

Luís Antero começou a fazer gravações de campo em Outubro de 2008. Teve como principal influência o nascimento de dois filhos gémeos. “Levaram-me a pensar: ‘Se eu não começar a recolher estes sons que existem na área onde habito, quando eles forem mais velhos não vão conseguir ouvi-los”, conta. 

Pôs-se a gravar pastores, “sons de alguma arquitectura rural, como moinhos”, e barulhos da natureza “que tendem a desaparecer”. “Comecei a ouvir a área onde habito. Nunca o tinha feito antes. É semelhante à poesia. Às vezes, só a poesia do local é suficiente para ir lá, ligar o gravador e gravar aqueles sons que existem ali e não existem noutro sítio qualquer”, explica.

Só depois foi convidado pela organização do Out.Fest para iniciar o projecto Sons do Arco Ribeirinho Sul. “É um bocado a continuidade do que fazemos com o Out.Fest e os concertos. É o fascínio com o som em vários estados”, explica Rui Dâmaso. “Essa busca pelo som do quotidiano” tem um bónus: “desmistificar a imagem do Barreiro”, onde há zonas naturais belíssimas e não apenas cicatrizes do passado industrial.

Luís descobriu um Barreiro onde vivem caranguejos, sapos, picapaus e “formigas trabalhadoras” inaudíveis sem recurso a microfones de contacto. Ouviu os sons da apanha de bivalves. Gravou o som do Tejo com hidrofones.

Rui Dâmaso sorriu com as reacções de “espanto” que esta “homenagem sonora ao Barreiro” provocou, sobretudo nas crianças do concelho, convidadas a participarem nas recolhas de sons no Out.Fest 2013. Os miúdos diziam: “Nunca tinha ouvido isto desta maneira.”

Semáforos desafinados

A mais de 300 quilómetros dali, também não será estranho encontrar Gustavo Costa de gravador, à escuta do quotidiano. 

Com 37 anos, é um dos mais activos músicos experimentais portugueses e também um dos criadores do Porto Sonoro. O projecto é uma das iniciativas do Manobras no Porto, programa que, em 2011 e 2012, pôs as artes a tentarem acordar o adormecido centro histórico portuense.

Durante o Manobras, chegou a haver 20 pessoas a gravarem sons nas ruas, nos edifícios históricos e nos cafés do Porto. Hoje, são sobretudo Gustavo e Eduardo Magalhães que mantêm o Porto Sonoro, que já tem umas oito centenas de sons on-line.

Em www.portosonoro.pt, ouvimos, por exemplo, duas amigas a sussurrarem fofocas durante um baptizado na Igreja de São Pedro de Miragaia. Ouvimos “pássaros com um canto cómico” na Feira dos Passarinhos. O ouvido apurado de Gustavo valoriza também sons mais subtis, como a frequência do sinal dos semáforos — há “semáforos desafinados”, garante.

Falta pôr na Internet outras “centenas” de sons: têm “horas e horas” de gravações para editar e colocar naquele que é o primeiro grande arquivo público de acesso livre de sons do Porto, refere o músico. 

Gustavo interessou-se pelas gravações de campo no final da década de 1990. “O nosso ouvido funciona como um filtro”, reflecte. Há uma “linguagem musical” que se revela no simples acto de registo, mas há também hipóteses criativas que se abrem. Alguns dos sons do centro histórico foram usados na instalação/performanceSombras da Rua de Trás e Arredores (2012). Outros foram manipulados por músicos experimentais, gerando peças musicais disponíveis no site do Porto Sonoro.

Parar para ouvir

Das recolhas de Michel Giacometti, entre os anos 1960 e 1980, até aos nossos dias, “houve um fosso muito grande” no que toca à construção de arquivos sonoros em Portugal, defende Gustavo Costa. 

A Binaural é pioneira neste ressurgimento das gravações de campo. “Nota-se uma explosão” desta prática, reconhece um dos fundadores da associação cultural, Luís Costa, de 45 anos. O material de gravação é cada vez mais barato e portátil e a Internet permite facilmente a criação de arquivos de acesso público, aponta. Mas também há cada vez mais interesse das faculdades, sobretudo de Belas-Artes, nestas técnicas.

Luís mudou-se de Nodar, em São Pedro do Sul, para Lisboa ainda criança, mas acabaria por regressar à aldeia em 2005 para começar um “projecto de vida”. “Desde miúdo que me habituei a gravar as pessoas nas aldeias, a família”, conta este economista de formação que encontrou na arte sonora produzida em contexto rural, o foco da Binaural, uma nova forma de vida.

Desde a sua fundação, em 2004, a associação tem recebido “dez a 15 artistas por ano”. Muitos deles dedicam-se à recolha de sons, actividade que a equipa da Binaural faz também em permanência. Deste trabalho constante vai nascer, no final deste mês, o Arquivo da Memória dos Vales do Vouga e Paiva, que arranca com meio milhar de registos, dos quais cerca de 300 são sons.

O arquivo que a Binaural foi construindo era, no início, um “subproduto” da actividade de criação artística. Hoje, “já não é”, sublinha Luís, que vê nele uma forma de “devolver ao território”, de lhe dar algo de “mais estrutural” que fique “como memória”. 

Para além dos sons, vídeos e fotografias das terras de montanha situadas nos distritos de Viseu e Aveiro, das lavadeiras de Bondança à pastora Amélia Figueiredo, de Covas do Monte, o arquivo mostrará também as obras de arte produzidas na região. É a Binaural à procura de “novos sentidos para arquivos do território”, atitude que tem “implícita uma certa crítica em relação a um certo purismo sonoro”. Interessam-lhe cada vez mais o vídeo e as “camadas” extra que ele acrescenta a um registo — “porque é que temos que excluir a visão?”.

Há uns anos, a Binaural preocupava-se com o registo do som da natureza. “Nestes últimos dois anos, temos tentado incorporar o mais possível elementos da presença humana no território”, revela Luís Costa. “Passarinhos são passarinhos”, brinca. “A paisagem sonora é provavelmente, de todos os elementos audiovisuais, muitas vezes aquele que menos diz sobre o território.” Assume a “autocrítica total”: afinal, “andou a gravar o Rio Paiva de frente para trás” à procura de minudências no som da água. “Estar num local onde gravo e não falar [com quem lá vive] começou a ser uma violência.”

Já Luís Antero, que está a preparar um projecto de gravações sonoras no centro histórico de Coimbra, gosta de estar sozinho na natureza. “Há um artista francês que diz que isto é como um vírus. As gravações de campo são uma espécie de vício muito saudável.” 

Um lema guia o seu trabalho e os seus concertos para olhos vendados: “Muitas vezes paramos para ver, mas raramente o fazemos para ouvir.” “O som ainda é visto como um elemento menor ou com menor peso na nossa paisagem”, lamenta. “Mas estão a ser dados passos no sentido de se alterar um pouco este paradigma. Muitos desses passos são dados por estas pessoas que fazem recolhas.”

Está visto que gravar o mundo é, para Luís, “uma causa”: “Acabo por fazer um pouco de serviço público ao divulgar este património sonoro.”

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