Fluindo com o fluxo

Os Elevator Repair Service confrontam novos enigmas

Depois do famigerado Gatz, uma transposição ipsis verbis d'O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, a companhia nova-iorquina, Elevator Repair Service, regressou à Culturgest, agora com a encenação de O Som e a Fúria, de William Faulkner.

Publicado em 1929, O Som e a Fúria, considerado um dos melhores exemplos da ficção modernista americana, descreve a decadência dos Compson, uma família aristocrática do Sul dos Estados Unidos. Ao utilizar o "fluxo da consciência" ("stream of consciousness") como método narrativo, o arrojo experimental de Faulkner alcança o virtuosismo na primeira parte do romance - "Sete de Abril, 1928" - narrada por Benjy, o filho mudo, com a idade mental de uma criança. E tal como uma criança, Benjy não distingue o passado do presente e a sua mente vagueia pelas memórias, associando imagens, cheiros e sons a pessoas e sentimentos intensos - amor, medo, angústia. Percorrendo os movimentos de consciência da personagem, a narrativa abarca os períodos da infância e da adolescência até ao momento presente, o dia 7 de Abril de 1928, em que faz 33 anos.

Poder-se-ia esperar a repetição de uma fórmula ou a validação de um método, mas, ao escolherem a primeira secção do romance, o encenador John Collins e a sua fabulosa equipa optaram por confrontar novos enigmas e problemas - aparentemente insolúveis. Uma das soluções inteligentes foi escolher vários actores para representar a mesma personagem em idades diferentes. Tal processo facilita a identificação das diferentes épocas (1898, 1910 e 1928), que se distinguem também na configuração dos ambientes desenhados pela luz e pelo som. Porém, mantendo-se intacta a complexidade da narrativa não-linear, a cada salto cronológico altera-se a cena, a distribuição das personagens, a luz e o som. Aliás, tudo se transforma ao longo do espectáculo e não há regras que permitam descodificar a encenação. Tudo é tão instável quanto o fluxo narrativo de Benjy, interpretado quase sempre por Susie Sokol. O cenário realista, que reproduz uma sala típica de uma família do Sul, assume diferentes funções, tornando-se inconstante nos seus significados. E se o livro é lido por vários actores, também há passagens silenciosas, apenas projectadas na parede. Mas é na magnífica composição sonora (Matt Tierney) que o mundo subjectivo se aloja e é através dela que acedemos ao interior perturbado de Benjy.

Devolvida a prosa de Faulkner, palavra por palavra, reproduz-se o seu efeito hipnótico e acrescentam-se momentos de teatro inesquecíveis, como a estranha dança sulista, numa coreografia hilariante, Vin Knight no papel da velha Dilsey, a cozinheira dos Compson, Annie McNamara é uma perfeita Caroline, a mãe neurótica e hipocondríaca. Mas será injusto mencionar apenas alguns intérpretes quando, na estruturação do caos, a coordenação do colectivo é absoluta, a simplicidade das interpretações é rigorosa e a encenação é cuidada até ao último pormenor literário e cénico. E se espectáculo exige ao espectador concentração máxima, também oferece um duplo prazer: o da literatura e o do teatro. E depois, é deixarmo-nos ir ao ritmo do fluxo.

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