Sarah Kane e Krzysztof Warlikowski num frente-a-frente de “esfolados vivos”

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Krzysztof Warlikowski é o mais conhecido encenador polaco, Sarah Kane a mais conhecida dramaturga britânica de uma geração. "Encontraram-se" em "Purificados". Foi em 2001 e os dois ainda eram "enfants terribles".

Quando, em 2001, o jovem polaco Krzysztof Warlikowski encenou "Purificados", Sarah Kane ainda era alguém de quem toda a gente falava. Sarah Kane, que se suicidara dois antes, aos 28, tinha-se tornado "a" dramaturga do final dos anos 1990. Tinha-se tornado o rosto de um teatro britânico em plena efervescência, levando a marca do londrino Royal Court Theatre, que a promoveu, a espalhar-se Europa fora. Tinha-se tornado, enfim, o espelho onde uma certa ideia de juventude se reflectiria, uma juventude a patinar na solidão e no "mal de vivre" da época.

Com "Purificados", onde o amor nos vem parar às mãos como granadas, Sarah Kane e Krzysztof Warlikowski faziam um frente-a-frente de "esfolados vivos" - as duas palavras são do crítico Piotr Gruszczynski, que diz, no livro "Théâtre écorché" (Actes Sud), que estes dois românticos não temem "a expressão da dor mais extrema".
A ambos tinha sido posto o carimbo de provocatórios e se Sarah Kane já tinha gerado fugas de espectadores das salas com esta peça, Warlikowski não evitou as cenas onde as emoções assumem a sua forma mais perversa. Juntou-os um romantismo glacial, com "lágrimas geladas", sem "complacência, nem misericórdia" (de novo palavras de Gruszczynski).

Deve ter sido fulgurante o "encontro" entre os dois, Sarah Kane e Krzysztof Warlikowski. Percebe-se isso aqui, nas palavras do próprio, em entrevista a Joëlle Gayot ("OutreScène: la revue du Théâtre National de Strasbourg"): "Sarah Kane expõe problemas que tocam a identidade de muito perto. Fala de homossexualidade, de incesto, de sexualidade mal definida. Não se sai intacto das palavras dela. Têm um efeito contagioso e arrastam para longe aqueles que as manipulam. Interpretar as peças dela contentando-se com um jogo de marionetas é aberrante. É preciso entregar-se com toda a sinceridade e honestidade que ela demonstrou ao escrevê-las, de outro modo não vale a pena representá-las. Sarah Kane não é convencional. O saber fazer ou a técnica não bastam. É preciso ser verdadeiro e ser capaz do mesmo abandono de si que ela manifesta ao contar directamente coisas muito pessoais. Estou a falar dos actores, mas também de mim, encenador. Damos a ver de nós uma parte muito íntima". Percebe-se isso também aqui: "'Purificados' não é um texto em que uma pessoa se possa preparar de antemão para tudo quanto ele a vai fazer viver. Pessoalmente, perturba- me muito. No fim, tornou-se uma questão pessoal. Tinha de me identificar com Sarah Kane, de saber o que ela dizia, porquê. De algum modo, interiorizei Sarah Kane. A violência dela tornou-se a minha violência. Uma violência interior que não nasce na rua, uma violência que vem do medo da vida."

"Purificados" (Teatro Nacional São João, Porto, 5 e 6 de Dezembro) não é de todo uma peça autobiográfica, mas a jovem Kane admitia ser uma reflexão sobre a sua própria vida. Que começou na leitura de "Fragmentos de um Discurso Amoroso", de Roland Barthes, onde o teórico francês compara "a situação de um apaixonado infeliz" à "de um prisioneiro de Dachau". "Comecei por ficar muito indignada com esta comparação, parecia-me impossível que os sofrimentos de amor pudessem ser tão terríveis quanto os de um campo de concentração. Mas depois de muito reflectir, compreendi melhor o que Roland Barthes quer dizer. Ele fala da perda de si. Quando alguém se perde de si próprio, o que é que ainda lhe resta? Desembocamos numa ausência total de saída, numa espécie de loucura."

Daqui nasceu a ideia de um grupo "que se tenta salvar pelo amor". Embora Kane refira que se passa numa universidade, o espaço de cena não é claro, pode ser um campo de correcção ou uma instituição psiquiátrica, comandado por Tinker, sádico polícia ou médico. Há um par incestuoso, Grace e o irmão toxicodependente Graham, tão simbiótico que ela se quer transformar nele - e transforma- se, fazendo um transplante de pénis. Há amor homossexual entre Carl e Rod, há quem morra de amor, e há para a autora uma certa esperança porque "o amor para todas as personagens pode sobreviver até as mais extremas e selvagens situações".

A este material, Warlikowski acrescentou um monólogo de outra peça de Sarah Kane, "Falta", pondo na abertura uma actriz austríaca a interpretá- lo no seu polaco imperfeito, pronunciando "cada palavra com enorme esforço e lutando por cada frase", conta-nos Joanna Derkaczew, crítica de teatro no jornal de referência polaco "Gazeta Wyborcza". "Tocava no significado mais frágil, etéreo do amor. E punha a peça num contexto completamente diferente mudando-a para uma confissão intensa e chocante de solidão que coloca as pessoas disponíveis a sacrificar tudo pela ilusão do contacto, da aceitação, do calor."

O corpo e a sexualidade
Na Polónia de 2001 que era "uma casa para todos", como dizia o slogan de campanha para o segundo mandato do presidente Aleksander Kwasniewski, o teatro de Warlikowski não era para todos - chocava. Mas servia para "revelar o que a cultura e sociedade polacas sentiam como estranho, diferente e até hostil" e as primeiras respostas dos críticos a "Purificados" foram "dominadas por um assunto, o facto de ele ter excedido os limites do que era aceitável em palco", escreve Grzegorz Niziolek no texto que leu em Salónica, quando o encenador recebeu o Prémio de Teatro Europeu este ano, e que nos enviou por e-mail (Niziolek é autor do livro "Warlikowski. Extra Ecclesiam"). Opositores e defensores "expressavam indignação e contentamento pela mesma razão", reforçando a convicção de que Warlikowski "teve a intenção de atacar os tabus sobre o corpo e a sexualidade".

A polémica de "Purificados" foi um espelho da mentalidade polaca, como vários dos escândalos que o encenador provocou, analisa Joanna Derkaczew. "Depois de 'Purificados', ele descobriu que as famílias burguesas saíam dos seus lugares depois de dois homens se beijarem mas viam calmamente as cenas de violações, ódio e violência." Estamos a falar de um encenador que vai buscar inspiração "aos mais violentos e brutais testemunhos da luta humana com o mundo, da Bíblia às tragédias antigas, de Shakespeare a Koltès". E que imprime aos seus espectáculos um duplo sentido de luta: "Para os actores, porque têm que se por numa posição de pessoas rejeitadas, perseguidas, têm que enfrentar as suas próprias inibições e hipocrisia. Para os espectadores, porque os espectáculos se tornam numa terapia de psicodrama, trazendo ao de cima as emoções esquecidas, negadas."

Nascido em 1962, Warlikowski pertence à geração que chegou ao teatro polaco na era pós-soviética, "depois das transformações políticas e económicas, entrando imediatamente em diálogo com o público e atraindo jovens", conta ao Ípsilon Piotr Gruszczynski. "Purificados" foi considerado um marco, continua o crítico, "definindo novas direcções para muitos encenadores, não apenas em termos de assuntos mas também de estilo". Foi também "um ponto de viragem" artístico para o próprio Warlikowski, acrescenta Joanna Derkaczew. "Nunca ninguém tinha falado com tanta profundidade sobre a urgência de ser amado, a dor da rejeição, o medo da exclusão e o sofrimento." É sua marca, combinar "os sentimentos mais íntimos com os assuntos mais políticos", porque "tornar o teatro político é a sua missão".

Warlikowski seria também, lembra Piotr Gruszczynski, "o primeiro a falar abertamente da importância da sexualidade e da identidade sexual", duas componentes que estão mais marcadas no seu espectáculo do que noutras encenações da peça. Hoje tornou-se na "marca" mais conhecida do teatro polaco na Europa, diz Joanna Derkaczew. Mas "o 'tesouro nacional' do teatro polaco está numa encruzilhada": "À espera que o seu teatro seja construído, a trabalhar no próximo espectáculo, tem que gerir o seu passado revolucionário e o novo rótulo de artista que se tornou maduro, sábio e manso."

Depois de ter sido condenado pelos críticos é amplamente elogiado pelos mesmos. Isso aconteceu quando encenou "Anjos na América", em 2007, a peça de Tony Kushner que todos esperavam que transformasse num "manifesto gay" mas que foi antes uma "inquietante análise do poder, ódio, aceitação". Essa unanimidade e o facto de não ter causado controvérsia é "o preço que pagou por se ter tornado um mestre e um modelo". "A posição de 'jovem rebelde' pode não ser confortável, mas é desafiante. Quando és o mestre as pessoas vão aplaudir-te mas não necessariamente ouvir-te."

De Sarah Kane poderíamos dizer hoje algo parecido. Não teve a oportunidade de amadurecer, morreu antes disso. Mas o seu teatro tornouse tão decisivo que os que vieram depois dela, e escreveram como ela, a transformaram em mestre. Este frente-a-frente de Sarah Kane e Krzysztof Warlikowski não é apenas entre "esfolados vivos". Há qualquer coisa de alma gémea aqui.

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