O mundo não é um livro de BD

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Um espectáculo que pretende recuperar o lado mais puro do espectador

"Tu e Eu" é uma peça que, antes de ser um texto dramatúrgico, é um poema e uma prancha de Banda Desenhada, diz a encenadora, Sofia de Portugal. O autor, o alemão Friedrich Karl Waechter (1937-2005), que, além de dramaturgo, também se dedicou à ilustração e BD, parece pintar com as palavras: "'Tu e Eu' é uma peça muito visionária, com uma grande componente imagética", diz a encenadora.

O desejo de projectar imagens de BD durante a peça acabou por surgir então naturalmente. Ricardo Pires Machado, ilustrador de BD, construiu as vinhetas que são projectadas ao longo da peça. É assim que GarcEU e TUninho, personagens de "Tu e Eu", regressam 24 anos depois da produção do Novo Grupo de Teatro - Teatro Aberto, numa encenação de João Lourenço. O novo espectáculo estreou ontem, no Teatro Aberto, em Lisboa, e está em cena até dia 1 de Março.

GarcEU vive numa caixa. Do mundo apenas conhece Raki, a personagem de um livro de BD, que o leva a viver grandes aventuras imaginárias. GarcEU nasceu para voar, mas precisa de um amigo para ganhar coragem. É então que surge TUninho, personagem que parece vir directamente do mundo dos sonhos, mas não é, como se poderia supor, uma amigo imaginário: "Garceu precisava de um amigo e deu um sopro de vida ao Tuninho. Os dois têm vida própria e nenhum é mais importante que o outro", diz a Sofia de Portugal.

Na caixa, com paredes semi-transparentes, existe uma escada que conduz ao telhado, onde se pode espreitar para o exterior através de uma janela. Os dois imaginam que são duas gralhas a voar pelo mundo. Enquanto GarcEU conta ao amigo a "Viagem de Raki pelo mundo", imagens de BD invadem o palco, ilustrando a narrativa e transportando o espectador para um universo colorido, que nunca se sobrepõe à actuação dos próprios actores. "Um livro é um livro mas o mundo é o mundo", diz GarcEU quando resolve sair sozinho da caixa, apesar de o amigo o tentar demover. No mundo não existem as aventuras que GarcEU imaginava. E depois de se perder, é o amigo TUninho que surpreendentemente o ajuda a encontrar o caminho.  

O sonho, a amizade, o medo e a superação dos obstáculos são os temas de "Tu e Eu" - uma peça que poderia ser dirigida às crianças, mas até se adequa mais aos adultos, segundo a encenadora. "É uma peça simples e, por isso, uma criança consegue compreendê-la, mas tem uma dimensão interior que vai muito para além da primeira leitura. Essa dimensão só é alcançada pelos adultos." Por exemplo, o Mito da Caverna de Platão está, de acordo com a encenadora, presente no texto: "O desejo de sair da caixa (caverna) para conhecer o mundo, assombrado pelo medo que impede o impulso do salto, lembra imediatamente a alegoria da caverna." "Quem sou eu e quem és tu?" são duas questões principais que orientam o espectáculo, construído em torno da simplicidade.

"'Tu e Eu' é uma peça que deseja recuperar o lado mais puro do espectador, despertando-lhe o primeiro olhar sobre o mundo e as coisas do mundo", resume Sofia de Portugal, que embora já tenha participado em alguns trabalhos de encenação, estreia-se nesta peça exclusivamente como encenadora, a convite do Teatro Aberto.

"O mundo não é um ninho onde te possas esconder a papar bolos e doces", diz GarcEU. TUninho gosta de comer e brincar, mas só dentro do ninho porque é quentinho e seguro. GarcEU e TUninho poderiam ser Eu e Tu.

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