Daniel Jonas sequestrou o teatro

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Reféns, a nova produção do Teatro Bruto, é a segunda experiência dramatúrgica do poeta Daniel Jonas

No ano passado assistimos a um atentado ao teatro em pleno Carlos Alberto, quando o Teatro Bruto levou à cena "Nenhures", o primeiro texto dramático do jovem poeta Daniel Jonas. Desta vez, o autor está mais brando, mas continua a arriscar.

"Reféns", a segunda peça de teatro de Daniel Jonas - também encomendada pelo Teatro Bruto e apresentada a partir de hoje na Fábrica Social/Fundação José Rodrigues - não pisa as convenções da dramaturgia, só lhe dá umas voltas. A lógica é a de sequestro.

"Quis explorar as relações de sequestro inerentes ao teatro", diz. Que se traduzem na "dificuldade dos actores em se despirem dos papéis", na vontade do encenador que se sobrepõe à "vontade do dramaturgo".

Em "Reféns", a montagem do cenário contribui também para o conceito de enclausuramento: "A luz da ribalta dá a sensação de que estamos em cima do palco e não numa plateia; que os actores estão de vigia e fecharam a quarta parede", refere. Encerram-se "actores, público e texto num espaço fechado".

Esta "carga de imobilismo" e o potencial de reflexão sobre a criação teatral estabelecem paralelismos com "Nenhures". Mas em "Reféns" há uma narrativa; as pessoas podem sair do teatro "com a estória controlada", garante Daniel Jonas. Bacigaluppi, um embaixador, e Lenore, uma activista política, são sequestrados por um grupo paramilitar de extremistas rebeldes ao regime de Aranda. Os dois constituem uma moeda de troca em negociações que têm como finalidade a libertação do cabecilha Salvador pelas forças oficiais do governo.

Daniel Jonas enveredou por uma adaptação realista, tendo como base acontecimentos contemporâneos. "A ideia para esta peça surgiu do conflito com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), de Ingrid Betancourt e Clara Rojas, que na altura engravidou de um guerrilheiro", recorda o autor. "Estava a ler o PÚBLICO (precisamente!) e aquilo foi muito dramático para mim": o desabrochar do afecto num contexto "de horror". Tal como Rojas, Lenore engravida de um guerrilheiro.

Contudo, "Reféns" não quer transpor para o palco este incidente. Na verdade, os confrontos políticos não se definem como o centro nevrálgico da acção, mas sim a dicotomia civilização/barbárie: a natureza animalesca de Bacigaluppi vai despertando (no entanto, ele pára no limite) enquanto o guerrilheiro Pelayo vai aspirando à civilidade do embaixador, no meio de provocações ("Afinal a porcelana é chinesice").

Este "romance de formação" não ficou tão explícito como de início se pretendia, não só porque o texto foi amputado em cerca de uma hora (Daniel Jonas quer a segunda ronda, mas a encenadora, Ana Luena, diz que não há dinheiro) mas também porque seria "demasiado óbvio". "Um marxista-leninista (Pelayo) nunca se converteria e não é propriamente inculto", indica Daniel.

Apostou-se numa progressão para a alucinação, na qual Pelayo veste a pele de um louco "tipo Kurtz do 'Coração das Trevas', de Joseph Conrad". Alguns dos momentos de insanidade são representados por intervenções musicais lancinantes, através da interpretação ao vivo de Sérgio Martins e Rui Lima, dupla repescada da equipa de "Nenhures" (tal como os actores Mário Santos e Pedro Mendonça).

Passar o texto de Daniel Jonas para o palco foi "difícil de entranhar", admite Ana Luena. "Mas foi motivador e resultou bem" - com "Nenhures" também foi assim, mas eles "já nem se lembravam".

"Reféns" acabou por ser "a porta perfeita para a abertura da programação 2009/2010 do Teatro Bruto", sublinha Ana Luena. Agora instalada num novo espaço, a Fábrica Social/Fundação José Rodrigues - por isso, hoje a estreia é dupla -, a companhia organizou um ciclo cuja temática é o Monstro, "o lado feio que todos temos", diz a encenadora.

Este monstro vai ser alimentado com vários espectáculos: o próximo é em Dezembro, a partir de um texto de valter hugo mãe.

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