Monstros como nós

Luc Bondy, um dos mais prodigiosos encenadores europeus, volta a morrer amanhã e depois nas três actrizes de "As Criadas", primeira vinda da Volksbühne a Portugal. O suicídio, diz ele, é o sítio de onde se vê melhor o mundo.

Não é muito frequente ver encenadores do tamanho de Luc Bondy (Zurique, 1948) a morrerem nos seus actores ("Passa tudo por eles, vem tudo deles. Nunca tentei limitar o espaço dos actores ou subjugá-los aos outros elementos da produção"), mas há uma razão para isto de ele desaparecer na sombra, atrás de personagens que assumem proporções sobre-humanas. O suicídio, aprendeu com Genet, é o sítio de onde se vê melhor o mundo e é por isso que, nesta montagem de "As Criadas" (de que já se tinha apoderado em 1971, numa altura em que ainda não tinha "idade para ter um ponto de vista", como diz ao Ípsilon por email) com datas amanhã e depois no Festival de Almada, Bondy dá a vida por Edith Clever (Wuppertal, 1940), uma das mais celebradas actrizes alemãs. "Sou um grande amigo de Edith e isso foi o meu ponto de partida", explica. "As Criadas" começam e acabam nela - mas também saem do corpo de Caroline Peters e Sophie Rois, monstros como nós que um dia decidem matar o patrão.

Para encenar este texto, que marca a estreia da mítica Volksbühne am Rosa-Luxenburg Platz em Portugal (depois da Schaubühne, em 2002, e do Berliner Ensemble, há um ano, o Festival de Almada faz agora o pleno das grandes companhias de referência do teatro berlinense), Bondy teve de se questionar sobre "o significado do crime no contexto da obra de Genet e sobre a metafísica que se esconde atrás dele". Um ano depois da estreia no Festival de Viena (de que é director para a secção de artes performativas desde 1997), acha que encontrou a resposta: "Para Genet, o crime era a maneira mais profunda de se pôr de fora - fora do mundo, fora de qualquer contexto social - e de voltar a estar a sós consigo, como um suicida que observa a sua própria morte".

O crime das irmãs Papin (Le Mans, 1933: duas empregadas domésticas assassinam as patroas, que a polícia encontra "estripadas e amanhadas como dois coelhos prontos para serem metidos no forno"), em que Genet se baseou para escrever a peça, também é um suicídio. De cada vez que Claire e Solange encenam a morte da Madame, de cada vez que a matam ao apossar-se da personagem dela quando ela está fora, matam-se a elas próprias (Bondy faz com que elas não tenham vida autónoma: estão sempre a desaparecer atrás das máscaras, a morrer, como ele, nas suas personagens, vigiadas pelo retrato gigantesco da patroa que querem aniquilar).

O avental e o burguês

É possível ser freudiano acerca disto, e reduzir esse instinto de matar o patrão a uma forma alternativa da necessidade de matar o pai, mas de momento Bondy (que já foi tantas vezes comparado a um psicólogo, pela maneira como atira todas as suas personagens para o divã) não está para aí virado: "A psicologia quer dizer tudo e não quer dizer nada, falar dela a propósito do meu trabalho é um cliché. As três mulheres que estão em palco procuram-se e condenam-se ao mesmo tempo: vêem-se umas nas outras e despenham-se no abismo das suas próprias identidades. Sartre compreendeu muito bem o mecanismo, que descreve no último capítulo do seu grande livro sobre Genet ['Saint Genet, Comédien et Martyr', publicado em 1969 pela Gallimard]", nota.

Essa "mise-en-abîme" vertiginosa aproxima o texto de Genet de uma corrida no poço da morte - este não é, definitivamente, o teatro da luta de classes (Genet tinha tanto desprezo pelos patrões como pelas criadas), ainda que Bondy, encenador de língua alemã que nunca se meteu com Brecht nem com Heiner Müller - não fuja a essa questão. "Esta história é, sobretudo, uma história de amor e de desejo - mas também de clausura, do ódio que estas criadas têm por elas próprias e pela sua condição social, de que ao mesmo tempo se orgulham".

É mais fácil ser-se uma criada quando não se é uma criada, diz Genet: tem mais graça quando o avental é o disfarce que usamos no Carnaval do que quando é a farda que vestimos todos os dias. Bondy, que descende de uma família de intelectuais da grande burguesia austríaca (a casa do pai estava sempre cheia de escritores e filósofos e, quando a família se estabeleceu em Paris, vinda da Suíça, Genet passou a ser visita recorrente), detesta que lhe atirem isso à cara. "Não é verdade que eu venha da burguesia. Os meus pais não tinham um tostão e, como judeus, esconderam-se onde puderam. Os meus avós viviam daquilo a que os alemães chamam "wiedergutmachung" [as reparações que a Alemanha pagou, depois da Segunda Guerra Mundial, aos sobreviventes directos do Holocausto e outras vítimas do regime nazi], o mínimo a que aqueles a quem os nazis tinham confiscado os bens tiveram direito. Portanto, a minha visão sobre esta peça foi influenciada pela minha 'burguesia'", responde-nos. De resto, ele também tem umas coisas a atirar à cara de Genet: "Conheci-o. A relação dele com os judeus era ambígua [escreveu numa carta que seria incapaz de ir para a cama com um judeu]. Para ele, ser judeu significava riqueza e islamofobia. As coisas são simplistas em todo o lado". Somos todos monstros, num ou noutro sentido: somos mais produtivos quando nos chamam nomes.

É disso que estamos a precisar, dizem as criadas: de um bocado de ódio.

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