Escrita de inverno

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O Inverno demora a chegar. Mas antes dele temos José Maria Vieira Mendes, as roupas pesadas e o chá para nos aquecer em "Ana". Encenação de Jorge Silva Melo, vai correr o país. Hoje está em Guimarães. Dia 13 chega ao CCB, em Lisboa.

Nada acontece por acaso. É tão verdade que podemos perceber melhor certos significados de "Ana", texto do dramaturgo José Maria Vieira Mendes e encenado por Jorge Silva Melo (Artistas Unidos), depois de sabermos que escreveu a peça sozinho em França, no Inverno, "no meio do nada".

"Estava muito solitário a pensar na escrita. Estava a fechar completamente o universo e a repetir as mesmas palavras". Foi entre essa experiência de escrever numa "residência de escrita" e a procura de um novo modo de falar em palco (criação de diálogos compostos por grandes monólogos) que nasceu "Ana".

Vai circular pelo país até chegar à Lisboa. Hoje está em Guimarães, no Centro Cultural Vila-Flor. Amanhã estará em Coimbra, na Oficina Municipal do Teatro. Estreia no CCB, em Lisboa, no dia 13, onde fica em cena até 22. Depois desloca-se para o Teatro Municipal de Almada no dia 26.

Elemento apaziguador

As referências do Inverno francês, vivido pelo autor, são claras. Quatro personagens vestem pesadas roupas de Inverno. O chá é o elemento apaziguador num contexto sombrio e distante e funciona como marca da passagem do tempo. Entre tílias, jasmins e a mísera luz de um candeeiro, a oferta e o pedido do chá repetem-se em cadência. O espectáculo inicia-se com Ana (Sylvie Rocha) e Paulo (Pedro Lacerda) num dia de descanso. Ana está de folga e não vai sair de casa. Está ali para passar o dia com Paulo, mas este está preocupado, a ouvir sons que Ana diz não ouvir.

Ela resolve fazer um chá, mas quando volta encontra o Homem (António Simão), que outrora também fez parte da sua vida. Ana não entende porque é que ele está ali, no lugar daquele que lhe era mais íntimo. Aqui estabelece-se um vácuo entre passado e presente. Quem será o primeiro homem na vida de Ana? Quem será este que entra em cena de repente? A névoa aumenta quando aparece Ana 2. A filha de Ana? E quem será o pai dela? 

É este jogo com o tempo - e a possibilidade de diversas interpretações - que norteou a escrita de José Maria. Dominado por esta ideia, falou dela a Jorge Silva Melo. Que lhe falou, por sua vez, de um quadro do italiano Correggio [1489 - 1534], "Leda e o Cisne". Na interpretação de Silva Melo (depois de ter "namorado" a tela vários dias), Zeus disfarçou-se de cisne e foi divertir-se com as Ledas. O encenador visualiza a cena decomposta como narrativa: a aproximação do cisne, a violação e o voo. "Mas também podemos optar por ver três cines e três mulheres", contrapõe.

"Se o tempo da narrativa deixa de ser identificável, o tempo do espectáculo conquista o protagonismo. Apenas a ele podemos nos agarrar. O princípio e o fim. O tempo entre o abrir e o fechar da boca. Entre a primeira e última frase", diz o dramaturgo, em suas notas sobre "Ana". "É o facto de o espectador não poder identificar os vários tempos de ‘Ana' (o que aconteceu primeiro, o que aconteceu depois? Quem é este? Quem é aquele)", continua José Maria, que permite "espaço para mais leituras do que as certezas e conhecimento".

Neste sentido, a protagonista Ana pode ser encarada como tendo "muitas vidas". Até mesmo porque Ana 2 - interpretada pela jovem Rita Brütt - é indicada por Silva Melo como a personagem central do texto. Mas deixando um espaço para a ambiguidade, acrescenta: "Ana é uma palavra simétrica", pode ter o mesmo significado, seja pelo início ou pelo fim. Para José Maria, "a protagonista é Ana, enquanto Ana 2 é um desdobramento da Ana, mas também outra personagem, a sua filha".

Encenador vs. aprendiz

José Maria Vieira Mendes escreve para os Artistas Unidos (AU) há doze anos. No início, Silva Melo (director dos AU) foi o mestre que ensinou o aprendiz. "Fui sempre sugerindo-lhe coisas" - na adaptação de uma peça, em mudanças nos textos. Até que chegou o momento que já estava "crescidinho e incentivei-o a escrever uma peça", brinca Silva Melo.

O diálogo continuou com "Ana", mas já com uma maturidade solidificada. "Eu já não tenho o papel de professor de escrita teatral. Ele [José Maria Vieira Mendes] é o autor e agora tenho de tratá-lo como se fosse o Shakespeare".

Estamos no Teatro da Politécnica, onde os AU ensaiaram. José Vieira também está a ver "Ana". É a segunda vez que assiste ao ensaio. Normalmente, diz Silva Melo, ele acompanha mais o trabalho de preparação do espectáculo. Mas neste momento o dramaturgo não tem muito tempo para se dedicar aos AU, está a dar aulas nos EUA.

José Maria diz que os actores de "Ana" devem estar zangados com ele, porque no texto há muitas repetições. Para o encenador a dificuldade de "Ana" é a falta de referências cénicas, de imagens ou definição das personagens. Não há certeza de nada e os actores tiveram de se deparar com questões como "quem são e o que estão a fazer. Quais são as relações entre as personagens?".

"É difícil representar, porque um actor" pergunta: "Eu sou quem? Faço de engenheiro ou médico", exemplifica o encenador. Em "Ana" não há respostas. "É um desafio literário curioso, que me faz lembrar o norueguês Jon Fosse, autor de quem gosto muito". Um actor não pode representar, continua, a ambiguidade que é permitida na literatura. No palco, um "actor está sentado ou está de pé". "Não é como na literatura em que é possível estar sentado e em pé ao mesmo tempo.

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