Beatriz Batarda no mundo secreto de Athol Fugard

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Passa de actriz a encenadora com uma peça do sul-africano Athol Fugard. "Olá e Adeusinho" fala de temas que lhe interessam - identidade, a existência ou não de Deus, a diferença entre culpa e responsabilidade

Para "o mundo secreto das feridas" sobre o qual Athol Fugard gosta de trabalhar, Ester e Johnnie são seres perfeitos. Os dois irmãos são as únicas personagens na peça "Olá e Adeusinho" que o sul-africano escreveu, encenou e representou (enquanto Johnnie) nos anos 1960. Dois seres sozinhos, que desembrulham a podridão das suas vidas, aos poucos, no palco. Não são fantasmas, mas neles a vida quase desaparece de tão corroída por recordações que são só erros e feridas.

Beatriz Batarda deixou-se tentar por essa forma de Fugard tratar as feridas familiares e convidou Catarina Lacerda (Ester) e Dinarte Branco (Johnnie) para o seu primeiro trabalho como encenadora (Teatro da Cornucópia, em Lisboa, até 6 de Junho, depois da estreia em Março no Cartaxo e de uma digressão pelo país que continuará em Julho em Beja e Faro).

"Interessam-me estes temas da família, da infantilização dos adultos quando confrontados com feridas antigas e de como perdemos o nosso chão de adultos quando estamos dentro do seio familiar", expõe Batarda, que diz ter construído o espectáculo "com uma visão próxima da representação". "A encenação foi muito marcada pelas minhas preocupações enquanto actriz."

Ester é abrupta na sua forma de chegar e de ser. E ainda mais abrupta quando tem à frente o irmão num estado de confusão que, por momentos, se confunde com submissão. A força está nela, que o confronta com a verdade e o contagia com o ódio que sempre sentiu e só isso o faz reagir. Ele deambula, perdido na ausência do pai, na indefinição do seu ser, misturando a sua inércia com uma sempre presente vontade de Deus.

Ester, "pessoa seca e irónica", desenvolveu pelo sofrimento formas de se relacionar com o outro "sem se deixar tocar", descreve a actriz Catarina Lacerda. "No processo de criação, falámos muito da máscara, dos mecanismos de defesa" que ela cria na sua procura "de uma recordação, de algo que a faça olhar para o passado e ver uma motivação para seguir em frente", continua a actriz. Nesta "viagem turbulenta", a mais velha dos dois irmãos transforma-se aos olhos do público e dela própria. Quando volta a casa, à procura do dinheiro de uma herança e dessa recordação, muitos anos depois de ter partido, encontra o irmão, Johnnie, "à beira da loucura e do suicídio", explica, por sua vez, o actor Dinarte Branco.

O choque de Johnnie é brutal no seu confronto com sonhos nunca concretizados e com a incapacidade de fazer algo por si próprio depois de toda a vida a cuidar de um pai deficiente. É a irmã que diz a Johnnie quem ele é, que o obriga a encarar que Deus não existe. E que não existindo Deus, não há pretexto, nem desculpa, nem perdão.

Os dois actores, como as suas personagens "em estado de vítimas", carregam uma fatalidade e um passado que os asfixia e, que a Johnnie, paralisa.

No desembrulhar de caixas e caixotes, no desfiar de recordações, vislumbra-se uma possibilidade de vida. Nas palavras do irmão, há ironia que provoca o riso, mas não sem dor, e uma leveza momentânea, mas afinal falsa. "É um riso, mas é um riso nervoso, por causa da tensão", diz Batarda. "E isso é muito interessante no texto." 

A escolha da encenadora e dos actores foi "não lhes dar perdão, não acreditar que há redenção", explica Batarda. "Há um renascer mas um renascer igualmente podre." Uma esperança quando a luz aponta para uma porta e nos mostra que o beco afinal tem saída? "Uma esperança de sobrevivência mas não de felicidade. Nem de perdão." Nesta encenação, "há menos pensamentos poéticos sobre a vida". "Não interessam nada. É teatro e é catarse, e a catarse também se manifesta de forma poética", diz a encenadora. 

Retrato psicólogo e social

Encorajada a experimentar a encenação por Luís Miguel Cintra e Carlos Aladro que a encenou em "De Homem para Homem", em 2008, Batarda foi à prateleira onde guarda os textos que gostaria de trabalhar. Desta vez não como actriz, mas como encenadora. E escolheu Fugard por ser um autor de temas que lhe interessam "como a injustiça, a segregação, a exclusão, sempre escritos de maneira muito humana". Nota: "Fugard, para além de dramaturgo, é encenador e actor, e isso reflecte-se na maneira como escreve. As personagens são construídas de forma concreta do ponto de vista psicológico e comportamental. Mas a peça fala-nos de mais coisas do que de psicologia humana."

No caso de Ester e Johnnie, a mãe é de origem inglesa e o pai afrikaner. No caso de Athol Fugard, nascido e criado, como eles, em condições humildes, em Port Elizabeth na África do Sul, o pai é de origem inglesa e de mãe afrikaner. "O Fugard é os dois, Ester e Johnnie, é aquela divisão." O texto "é muitíssimo pessoal, adaptado e invertido, mas muito pessoal", continua Batarda.

O texto retrata o empobrecimento dos afrikaners, que imigraram no século XVII com a crença enraizada de que eram o povo eleito numa Terra Prometida, mas que dois séculos depois se confrontam com a chegada e o domínio económico dos ingleses, simbolizado pela expansão dos caminhos-de-ferro, onde trabalhou o pai de Ester e Johnnie e onde sonhou trabalhar Johnnie.

Fugard trata nesta peça esse cruzamento que cria "conflitos de identidade grandes". Além da tensão psicológica e do retrato social, a peça contém "uma forte componente de pensamento filosófico e teológico", com o questionamento da existência de Deus. "Não há povo eleito coisa nenhuma", conclui a encenadora. "Os afrikaners estão numa situação de beco sem saída e de crise com a sua fé. Portanto, povo eleito, olá e adeusinho."

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