Aquele homem sou eu

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Este fim de semana, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, "A Dor". Durante três dias vamos poder ouvir falar de um homem que não se sabia se estava vivo ou morto. Marguerite Duras, pela mão de Patrice Chèreau, recorda a espera por R... É uma voz vinda de um tempo que não se pode esquecer, de tão perto que pode estar o seu regresso

No início era uma mulher à espera e que, nessa espera dorida, violenta, sufocante, escreveu. Chamemos-lhe D. porque ela própria, mais tarde, não se reconheceu nos textos que escreveu e, se os escreveu com o seu nome, Duras, Marguerite. "Não me lembro de o ter escrito. Sei que o fiz, fui eu que o escrevi, reconheço a minha escrita e os pormenores daquilo que conto, volto a ver o local, a gare de Orsay, os trajectos, mas não me vejo a mim a escrever este Diário. Quando é que o escrevi, em que ano, a que horas do dia, em que casa? Já não sei nada.", previne.

É uma mulher cheia de raiva. Escreveu porque "não podia esquecer", não apenas sobre esse tempo de espera por um homem que não sabia se vivo se morto, mas sobre um tempo que não "distinguia vilões de heróis, cúmplices de ignorantes". Abril de 1945: "Ele está dentro de uma vala a morrer com a cabeça voltada para a terra, as pernas dobradas, os braços estendidos. Está morto. Na estrada, ao lado dele, passam os exércitos que avançam. Há três semanas que está morto". São dias nas filas das repartições a falar com quem sabe menos do que ela, são horas à espera que o telefone toque, são noites sem dormir, a cigarros e vinho. Mais tarde, no mesmo mês: "A Alemanha está em suplício. A Alemanha está em chamas. Ele está dentro da Alemanha. Não se tem a certeza, não completamente. Mas pode dizer-se isto: se não foi fuzilado, se ficou na coluna, está no incêndio da Alemanha". E esse desconhecimento é tão irracional e imenso que se volta contra todos: "Como é que se pode ser Alemão?". "Pude querer-lhes mal durante certo tempo, era claro, nítido, ao ponto de os massacrar todos, até chegar ao número completo dos habitantes da Alemanha, suprimi-los da terra, fazer com que nunca mais fosse possível". Depois, "não sei qual era o dia, se era ainda um dia de Abril, não, era um dia de Maio, uma manhã às onze o telefone tocou". Estava vivo. "Ouvi gritos contidos nas escadas, um tumulto, barulho de passos. Depois portas a bater e gritos. Era isso. Eles chegavam da Alemanha". Estava vivo, fraco, mas vivo.

Na voz de uma só mulher

No início há uma mulher, chamemos-lhe D., de Dominique, actriz, Blanc de apelido, "tentada por um texto" apresentado por um homem, chamemos-lhe Patrice, sem que o peso do apelido, Chéreau, surja como uma mão férrea que tudo domina. Quase como se o homem se apagasse para deixar a mulher falar pela voz do homem que não sabe se está vivo ou morto. Não há efeitos, nem de luz ou de som, nem uma cenografia explícita ou ilustrativa. "É uma actriz, completamente sozinha em palco fazendo reviver a aventura que foi a espera pelo regresso desse homem". É uma leitura, é uma encenação, é um relato porque, do mesmo modo que face à literatura, esta "fenomenal desordem do pensamento e do sentimento" envergonhava a autora, também uma adaptação cénica leva "a um encarceramento da imaginação", diz P.

"É evidente que o teatro não está ausente. Há um trabalho com a luz, com o cenário, há uma reflexão sobre o todo", mas, acrescenta, "as leituras são exercícios práticos", distinguindo-as assim de um espectáculo. "É o prazer de fazer teatro sem reflectir", diz. Podemos, então, admitir que, às imagens ausentes de metáforas do texto de Duras não se podem acrescentar outras imagens que impeçam uma identificação, ou uma projecção, directas da parte de quem ouve. Duras dizia que era preciso não esquecer. "Escrevi para que não nos esquecêssemos", justificou.

É um texto sobre a vida três pessoas: D., o homem, Robert L., por quem espera (Antelme, de apelido real, também autor, nomeadamente de "A Espécie Humana", sobre a experiência vivida e, em espelho, com esta "dor"), e um resistente, François, de apelido Miterrand, aqui na voz de uma só mulher, uma actriz que nunca representa, apenas ritualiza, pelas palavras, um acto de memoração.

Chéreau activa um processo não necessariamente de reconciliação proporcionada pelo teatro, mas "como acto de partilha". O texto, escrito "de um fôlego", é "sobre um tempo que não se pode esquecer". Chéreau fala de "um exercício prático para fazer chegar ao espectador a um pensamento" e, acrescenta, "um pensamento que as pessoas conhecem mal, mesmo que conheçam Duras". Duras tem uma "escrita premonitória sobre a deportação e libertação alemã".

É um espectáculo, e uma encenação, que levanta mais perguntas do que dá respostas. Chéreau dá a ver o que Duras deu a ler, sim, mas o encenador, no seu modo de trabalhar o tempo do corpo suspenso pela próxima palavra, permite que os corpos, e as vozes do homem por quem D. espera, e todos os outros, mais do que se materializarem, existam de acordo com o potencial de projecção de cada leitor/espectador. Chéreau opta por não dar corpo as outros, e explora, com a presença da actriz, características do seu olhar, seja ele cinematográfico - ecoam aqui as pressões exercidas pelos corpos nus e anónimos em "Intimidade", os olhares viciados e cruéis em "A Rainha Margot", ou até as rugas de Isabelle Huppert em "Gabrielle" - ou teatral - quem tiver visto, em 2007, a leitura que fez no Teatro Nacional S. Carlos de "O Grande Inquisidor", retirado de "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievsky, lembrar-se-á das possibilidades permitidas por um palco vazio, inundado pela voz.

É um tempo barroco, prenhe de símbolos, lento na sua afirmação, pesado na sua intenção. Um tempo que vai da pronunciação da palavra à formação de uma imagem equivalente, e individual, no nosso cérebro. As memórias de D. passam a ser as nossas, num exercício de contemplação do tempo e da história.

(As declarações de Patrice Chéreau fora retiradas de um vídeo/entrevista produzido pelo Théâtre des Amandiers de Nanterre; "A Dor" está editado pela Difel numa belíssima tradução de Tereza Coelho)

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