O teatro do Porto é um país distante

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Até 27 de Março, 16 companhias do Porto ocupam o São Luiz, em Lisboa, num ciclo em forma de ponto de interrogação. Sobre uma cidade em crise, mas também sobre um país em que fazer 300 quilómetros é toda uma aventura

Quase cinco anos depois do fim do Rivoli tal como o conhecíamos, o teatro do Porto volta a entrar num teatro municipal - mas num teatro municipal de Lisboa. É bem possível que seja o sítio certo para um teatro desesperadamente à procura de palco: no sentido literal, porque a falta de espaços de apresentação é um dos mais desmoralizadores impedimentos com que se debate a produção teatral independente da cidade, mas sobretudo no sentido figurado, porque a esmagadora maioria do teatro que se faz no Porto (o teatro que se faz fora do circuito Teatro Nacional São João-Teatro Carlos Alberto) faz-se no limiar da invisibilidade ("É o grande problema do teatro do Porto: falta de visibilidade. A nível mediático e a nível de público", aponta o dramaturgo Jorge Palinhos). A 300 quilómetros dos júris da Direcção-Geral das Artes, de praticamente toda a crítica e até do meio teatral. O de Lisboa e o do Porto, se tivermos em conta o "brain drain" dos últimos anos: programadores, produtores, actores, encenadores, há muito tempo que uma parte do teatro do Porto já se mudou para Lisboa.

 

Até 27 de Março, 16 companhias de teatro do Porto (e não são todas: em certo sentido, quantitativo, o fenómeno do teatro do Porto é um fenómeno do Entroncamento) ocupam o São Luiz (que de resto passou há poucas semanas a ser dirigido por mais um imigrante do Porto, José Luís Ferreira), para Lisboa ver. Parece que é preciso montar uma operação especial como este "Ciclo de Teatro do Porto?" (o ponto de interrogação é um "statement") para que companhias indiscutíveis como o Ensemble - Sociedade de Actores ("Dueto para Um", dias 5 e 6), o Visões Úteis ("A Comissão", dias 18 e 19) e a Circolando ("Areia", dias 9 e 10, e "Mansarda", dias 12 e 13) se mostrem na capital, admite João Pedro Vaz: "O [ex-director do São Luiz] Jorge Salavisa quis organizar este ciclo porque percebeu que as companhias do Porto não tinham impacto em Lisboa quando lá iam isoladamente. É óbvio que ter de montar uma operação para que o teatro do Porto se veja em Lisboa levanta questões acerca da difusão de espectáculos em Portugal".

Também levanta muitas questões sobre o Porto - e sobre Lisboa, nota Carlos Costa, do Visões Úteis: "Sinto-me um bocadinho tipo animal exótico. Como se o teatro do Porto fosse uma coisa vinda das Ilhas Galápagos. Este ciclo é sintoma de uma patologia profunda da circulação dentro do país: são só 300 quilómetros, há aviões, comboios e auto-estradas, e no entanto não se circula". Sobretudo não se circula nos dois sentidos: "Não passaria pela cabeça de ninguém organizar um ciclo de teatro de Lisboa no Porto, até porque os espectáculos de Lisboa ainda vão sendo vistos no Porto. Se as coisas funcionassem normalmente, o Visões ia regularmente a Lisboa - e ia o [Teatro] Bruto, e ia a Palmilha [Dentada]. É um círculo vicioso: o trabalho que é mais visto constitui-se mais facilmente como referência, e por isso é ainda mais visto; o teatro do Porto é obviamente menos visto". A operação em si, completa Francisco Alves, do Teatro Plástico, que não faz parte da comitiva, "dá-nos o retrato de um país ainda profundamente provinciano". É como se, pelo inusitado aparato da coisa, este ciclo reforçasse a distância em vez de a encurtar: "A única vantagem que vejo é que talvez assim a corte que reparte as verbas para a criação teatral possa decidir com menos desonestidade. Na maioria das vezes, a avaliação faz-se na mais completa ignorância. Mas que o Porto precise de ir a Lisboa para se interrogar parece-me triste. E é absolutamente irónico que este ciclo se faça num dos três teatros municipais de Lisboa quando no Porto estamos privados até desse instrumento básico - o que também nos impede de nos pensarmos colectivamente".

Muito com muito pouco

Juntos, ainda assim, eles são muitos, e é por aí que este ciclo pode ser mais produtivo: passado o ponto de interrogação, talvez possa haver lugar para algum espanto. "O teatro do Porto tem uma vitalidade extraordinária, se considerarmos que estamos a falar de uma cidade de 200 e tal mil habitantes", sublinha Carlos Costa. Às 16 companhias que vão estar no São Luiz, haveria que acrescentar pelo menos seis: o Bruto, que era para apresentar "Still Frank" no Jardim de Inverno mas desistiu por falta de condições técnicas, os históricos Seiva Trupe, Teatro Art'Imagem e Pé de Vento, a Panmixia de José Carretas ("E é uma pena, porque o 'Ilhas' é provavelmente o espectáculo 'mais do Porto' dos últimos anos", lamenta o crítico do PÚBLICO Jorge Louraço Figueira) e o Plástico. 

 

Mais do que um ponto da situação, o ciclo comissariado por João Pedro Vaz procura fazer a história, "inclusiva mas não ecuménica", do teatro do Porto, recuando (passado sábado e domingo), com "A Morte de um Caixeiro Viajante", à ruptura introduzida pelo Teatro Experimental do Porto na década de 50, e fazendo depois "forward" até ao último paradigma, o da geração da Fábrica da Rua da Alegria, um condomínio aberto de companhias emergentes (do Teatro do Frio ao Teatro Meia Volta..., da Erva Daninha à Tenda de Saias) que estará em destaque no "showcase" de 27 de Março. Pelo meio, os já históricos Assédio ("Ossário", dias 4 e 5), Ensemble e Teatro do Bolhão ("Mão na Boca", dias 19 e 20); as Boas Raparigas ("Libração", dias 18 e 19) e o Visões Úteis, representando a geração de 95; os casos particulares (e de particular sucesso internacional) do Teatro de Marionetas do Porto ("Nada ou o Silêncio de Beckett", dias 24 e 25; "Os Três Porquinhos", dias 25 e 26; "Cabaret Molotov", dias 26 e 27), da Circolando e do Teatro de Ferro ("Ópera dos Cinco Euros", dia 27); e o fenómeno Palmilha Dentada ("Dimas e Gestas", dia 27).

 

É uma amostra representativa? "É pelo menos bastante ampla", diz Ricardo Alves, da Palmilha Dentada. E ainda que as vias de trabalho sejam suficientemente divergentes para que não se possa falar de um teatro do Porto, há marcas que o ciclo dá a ver com bastante clareza: a proliferação de gerações e de companhias a trabalharem paralelamente ("que é estranha numa cidade com tantos problemas ao nível dos locais de ensaio e de apresentação: há muitos pequenos grupos, mas não há um circuito de espaços alternativos ou não consagrados", nota Ricardo Alves); o investimento num teatro de pesquisa, que João Pedro Vaz considera resultar "da ausência de uma indústria", e na "realização plástica", que Jorge Louraço Figueira diz descender da exposição prolongada ao trabalho de encenadores como Ricardo Pais e Rogério de Carvalho e se faz em detrimento "do lado mais vital da criação teatral, o da carnalidade"; uma dramaturgia mais interessada na realidade do que em jogos textuais; e a relação umbilical com as quatro escolas de teatro da cidade (sobretudo com a Academia Contemporânea do Espectáculo, na geração de 95, e com a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, na geração da Fábrica), que ao formarem profissionais de todas as áreas da criação artística, disciplinas técnicas incluídas, permitem a constituição de núcleos auto-suficientes.

 

O agravamento das condições de produção e de apresentação, com a cedência às produções La Féria do mesmo Rivoli que Isabel Alves Costa transformou numa segunda casa da criação teatral independente da cidade e com a progressiva precarização do financiamento público, tornou o teatro do Porto um caso ainda mais particular nos últimos anos. "Quem fica a fazer teatro no Porto não fica porque há procura ou dinheiro a ganhar: fica porque tem mesmo necessidade de fazer coisas. Não há mercado para alimentar. Nós não respondemos a uma ânsia de programação, pela simples razão de que não há, como há em Lisboa, instituições a programar o que quer que seja, à excepção do S. João. Respondemos à nossa própria ânsia de fazer coisas", argumenta Ricardo Alves. "Talvez a grande marca do teatro do Porto seja uma grande capacidade de resistência: fazemos muito com muito pouco", reforça Francisco Alves.

 

Príncipes e proletários

 

Por ser tão mau, talvez seja mesmo o melhor momento para olhar para o teatro do Porto e fazer certas perguntas - perguntas como até onde poderia o teatro do Porto chegar se as condições não estivessem tão abaixo do mínimo em todo o lado, a não ser no TNSJ (outra diferença colossal em relação a Lisboa, onde há diversas instituições, públicas e privadas, nacionais e municipais, com estrutura e dinheiro para produzir). E aqui estamos nós a entrar, finalmente, naquilo a que Isabel Alves Costa chamava "o círculo do príncipe" e a que Ricardo Alves chama "o Triângulo das Bermudas", o eixo TNSJ-Serralves-Casa da Música: "O que falta no Porto são circuitos de dimensão média: circuitos onde uma companhia de teatro possa errar sem estar sujeita à visibilidade do S. João ou de Serralves. E salas em quantidade suficiente para que as temporadas não tenham de ser tão curtas: no Porto, não há tempo para que os espectáculos se possam instalar, para que a palavra possa passar". Não se trata só de não haver salas de dimensão intermédia: trata-se de haver uma desproporção de meios tal que as companhias se vêem forçadas, por instinto de sobrevivência, a não quererem fazer outra coisa a não ser coproduzir com o Nacional. 

 

Nuno Carinhas, o actual director do TNSJ, vê nessa fraqueza uma força: "O cruzamento dos profissionais é constante, muito por via das coproduções que propiciam a contaminação recíproca do TNSJ e das companhias independentes". Mas há um mas, admite: "A ausência de alternativas, a começar por um teatro municipal, é penalizadora para o tecido teatral da cidade, ainda que lhe dê musculatura". Carlos Costa retoma o raciocínio: "Quem não estiver a coproduzir com o S. João tem de se conformar com espaços que não têm correntes de público. Toda a gente pergunta: o que é que está hoje no S. João? Mas ninguém pergunta: o que é que está hoje naquela cave não sei onde? Pesos pesados como o S. João, Serralves e a Casa da Música acabam por sugar os recursos - a atenção da imprensa, dos mecenas e do público. No caso do S. João, apesar de tudo, a verdade é que o príncipe vai redistribuindo os recursos ao coproduzir com a maioria das estruturas". A maioria, não todas: "Há um grupo de incluídos e um grupo de excluídos. É pena porque o inegável padrão de qualidade do TNSJ podia ter impregnado todo o tecido teatral da cidade se a relação não tivesse sido tão casuística", critica Francisco Alves.

 

Perante o desaparecimento desse espaço do meio, e a ocupação do que dele restou pela geração de 95, onde fica quem veio a seguir? Há uma parte da geração da Fábrica que ainda está na Fábrica, mas há outra que anda por aí (e uma até que já não anda em lado nenhum). Alfredo Martins, com o seu Teatro Meia Volta..., já andou pela Finlândia, agora está de regresso ao Porto, de onde parte no dia 27 para Lisboa com um autocarro cheio de habitantes da Sé. É uma maneira de pôr outro ponto de interrogação, desta vez à frente do público: "Desde que me lembro ouço as companhias do Porto a queixarem-se de que estão com dificuldades de público. Isso é significativo". Também é significativo a Fábrica não ter conseguido deixar de ser "apenas um armazém de companhias", ainda que o modo cooperativo como elas trabalham pareça "maravilhoso": "Também lá estivemos, e por isso contra nós falo, mas na Fábrica nunca se conseguiu fazer mais do que dividir o espaço, quando o que seria interessante era dinamizá-lo. O colectivismo do teatro do Porto é um bocado aparente, o que é natural: havendo menos recursos, a concorrência é maior".

 

O drama de um paradigma proletário como o da Fábrica é que, para resistirem, "as companhias serão obrigadas a tentar viabilizar os seus projectos economicamente em vez de os tentarem viabilizar artisticamente, o que fará da maioria delas carne para canhão", diz Jorge Louraço Figueira. Mas ainda que esse discurso (acerca da precariedade, da distância em relação ao centro de decisão, da dependência do S. João, da asfixia municipal, da falta do meio) seja "um discurso importante", admite Rodrigo Malvar, do Teatro do Frio, que continua na Fábrica, não é o discurso que lhe apetece ter agora. Agora apetece-lhe ir a Lisboa dizer que o Teatro do Frio existe (o segredo: "somos muito criativos a pensar em maneiras de arranjar dinheiro, e para nós, muito pragmaticamente, este ciclo também é uma maneira de ganhar dinheiro") e andar para a frente. 

Ir a Lisboa é obviamente um passo em frente. "O que falta muitas vezes no Porto é esse pé que se mete na porta e obriga a porta a abrir-se. Este ciclo põe o pé na porta", resume Jorge Palinhos. Nas próximas semanas, o teatro do Porto terá um palco, e capas de jornais, e cinco minutos de fama na televisão - e claro, dirá que para ter tudo isto teve de ir a Lisboa. 

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