Fundamentalistas causam distúrbios e ameaçam peça de teatro de Castelluci

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Imagem do espectáculo "Sul concetto di volto nel figlio di Dio" DR/Klaus Lefebvre

Os distúrbios em Paris já duram há uma semana

A última encenação do italiano Romeo Castelluci, "Sul concetto di volto nel figlio di Dio", até domingo no Théâtre de la Ville, tem suscitado reacções violentas e extremistas por parte de vários grupos de fundamentalistas cristãos que desde a semana passada tem boicotado, sem sucesso, a apresentação da peça. Em sete dias, a as autoridades francesas já fizeram 220 detenções, avança o Le Figaro.

A peça, que ao fundo do cenário reproduz o rosto de Cristo pintado por Antonello da Messina em "Salvator Mundi", retrata a história de um pai, velho, com incontinência renal, e que é ajudado pelo filho. É na incontinência do homem e na constante presença das suas fezes no cenário que o Instituto Civitas, um grupo francês fundamentalista, vê uma ofensa à religião católica.

O grupo extremista, que desde a estreia da peça, na quinta-feira, dia 20, se tem manifestado à porta do teatro parisiense, tentando por várias vezes forçar a entrada e a interrupção e cancelamento do espectáculo, acusa o encenador Romeo Castelucci de "cristianofobia" e desrespeito da imagem de Jesus. Desde então, já vários grupos fundamentalistas se uniram à causa do Civitas, gerando pequenos tumultos no centro da cidade.

A situação provocou reacções não só do próprio encenador e do Théâtre de la Ville, mas também da igreja, que condena os actos de violência, defendendo que a Igreja promove e incentiva o diálogo entre a cultura e fé, resguardando a "liberdade de expressão que respeite o sagrado". Também o ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand, citado pelo Le Figaro, explicou que compreende que algumas passagens do espectáculo possam chocar mas que isso "não pode servir de desculpa nem pode justificar os métodos violentos usados por estes grupos e que vão contra a democracia". "O teatro é o lugar da liberdade de expressão", disse o ministro. O grupo tinha também já lançado ameaças aos críticos e jornalistas que haviam feito a defesa da peça.

Nos últimos dias, a polícia francesa já identificou e deteve cerca de 200 pessoas por perturbarem o normal funcionamento do teatro e ameaçarem a integridade física já não da equipa mas também dos telespectadores. Segundo o jornal "Le Figaro", 15 pessoas já foram formalmente acusadas de "restrição à liberdade de expressão", enfrentando agora uma pena de um a três anos de prisão e uma multa que varia entre os 15 mil e os 45 mil euros, em caso de violência.

Na noite de estreia os manifestantes conseguiram interromper o espectáculo, que foi retomado depois da intervenção da polícia, que se viu obrigada esta semana a reforçar a segurança no teatro, depois de os fundamentalistas "acamparem" nas imediações, atacando com ovos e óleo, as pessoas que desejavam ver o espectáculo.

Para Romeo Castelluci, conhecido por gerar alguma controvérsia nos seus trabalhos, não sendo esta a primeira vez que evoca a imagem de Deus, tudo não passa de um mal entendido. "Não há nada de blasfemo nem de ‘cristianofobico'", disse o italiano numa entrevista ao Le Monde, lembrando que "estes activistas não podem saber, porque não a viram [a peça]". "Nós até podemos ver o espectáculo como um canto de amor por Cristo, que é o caso de alguns espectadores." O encenador explicou ainda que recorre várias vezes às metáforas com a religião, falando de Deus nas suas peças, como uma forma de abordar a condição do homem. Parafraseando as palavras de Jesus na cruz, acrescentou: "Eu perdoo-lhes porque eles não sabem o que fazem".

Já Emmanuel Demarcy-Mota, director do Théâtre de la Ville, foi mais duro nas palavras. Em comunicado, o responsável escreveu que aquilo que está a acontecer em Paris não são simples manifestações mas sim "actos violentos que pretendem impedir o acesso do público ao Théâtre de la Ville". "Estas acções de carácter fascista são absolutamente inadmissíveis. Os meus colaboradores e eu, em acordo com Romeo Castellucci e a sua equipa, assim como todo o pessoal do teatro, não cederemos em nenhuma circunstância a estas ameaças e a esta intimidação", garantiu, lembrando que o espectáculo já foi apresentado na Alemanha, Bélgica, Noruega, Reino Unido, Espanha, Rússia, Países Baixos, Grécia, Suíça, Itália e Polónia, nunca tendo gerado qualquer tipo de controvérsia. A peça foi estreada em França durante o festival de Avignon em Julho, onde o PÚBLICO assistiu e falou com Romeo Castelluci, que explicou querer materializar o momento em que "Cristo entra na carne do homem e morre na cruz".

"Passamos da cropologia [o estudo das fezes, vulgo escatologia] à escatologia [encontro entre a teologia e a filosofia que reflecte sobre o fim do mundo]: hesitamos na dimensão metafórica da obra", disse ao PÚBLICO o encenador.

Apesar de todas as manifestações, distúrbios e pedidos de cancelamento do espectáculo, "Sul concetto di volto nel figlio di Dio" continua em sala, mantendo-se até domingo no Théâtre de la Ville, apresentando-se depois, entre os dias 2 e 6 de Novembro, no espaço Le 104.

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