A sujidade da palavra

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Elmano Sancho é o corpo e a voz dos corpos e vozes que compõem Herodíades Jorge Gonçalves

São apenas oito apresentações - até dia 21 - de um texto de fé e morte assinado por um autor que, em Portugal, desconhecemos: Giovanni Testori

Ao fundo ouvir-se-iam os bárbaros, aqueles que chegavam anunciando a mudança dos tempos. E dentro de um palácio do qual não restariam senão os veludos vermelhos, pendendo, estaria uma mulher, neste caso um homem, neste caso um coro de vozes e de corpos com um mesmo nome, Herodíade, lembrando aquela que conspirou contra João Baptista. E aquele corpo, habitado por uma fé culpada, e por isso mística, a atirar-se a todos, como se procurasse a razão, sabendo que não se iria adaptar. Não quereria adaptar-se.

Herodíades é um texto de fim de vida de um autor italiano que, em Portugal, desconhecemos*: Giovanni Testori (1923-1993), homem rico de Milão, católico devoto, homossexual público, conservador militante. Admirador de Caravaggio e amigo de Bacon, preferia os pugilistas nus e os corpos dos proletários despudorados, como lhes chamaria Pasolini, para neles espelhar o sagrado. Corpos vindos dos arrabaldes de Milão que ele tão bem descreveu nos contos que deram origem a Rocco e os seus irmãos, de Visconti, e que ele queria fazer chegar aos santos sujos que pintou, inspirado pelos quadros do renascimento lombardo. Corpos imperfeitos, como as dúvidas de alguém a quem a fé guiou até ao fim da vida. "É um homem que encontra a realidade na mitologia" e, pecador confesso mas casto de moral, quer perceber, através de uma poética transcendente, em que família católica se inscreve, explica Jorge Silva Melo, claramente emocionado no ensaio a que o P2 assistiu, deixando-se levar pelas palavras do texto e acompanhando-as como se fossem uma orquestra de instrumentos.

Giovanni Testori procurou apaziguar o tumulto em que viveu no fim da vida numa tríade de textos sobre Cléopatra, Herodíade e Maria. A sua escrita - "agora simplificada se comparada a peças dos anos 70 e 80, continua rica mas já não tem os dourados deAmbleto nem de Verbau, sobre Verlaine e Rimbaud" - originou textos quase ilegíveis. Porque as pessoas, na vida real, não se misturam com rigor antropológico, mas poeticamente, Testori inventou uma língua onde cruzou o francês napoleónico e o outro, que vinha do Magreb, com um italiano fabril, rural, cru. Exibiu em pleno o seu extremo barroco. E, através desta língua, quis desenhar um corpo que fosse a própria palavra. "Enquanto para muitos artistas o corpo é o objecto, para Testori o corpo é o sujeito da elocução porque o verbo é a palavra. Não estamos a olhar um corpo, estamos a ser esse corpo". 

Herodíades vive do conflito entre as imagens que o verbo cria e as imagens que o sujeito proporciona e a apropriação que Jorge Silva Melo e Elmano Sancho fizeram do texto e da tradução de Miguel Serras Pereira (edição Assírio & Alvim), procura "a porcaria da língua" e não "a porcaria do sujeito da língua". Dizia o padre-poeta José Tolentino de Mendonça quando foi assistir a um ensaio que "não há nada de delicado em Testori a não ser a natureza do intérprete". Explica Silva Melo: "Testori fala dos BMW, de asneiras e internatos onde rapazes se masturbam, das relações bíblicas e das outras, dos outros e dos perfumes, na mesma frase." E fá-lo sujeitando o actor a ser merecedor do texto. Diz Elmano a justificar esta prova de fogo: "Há passagens do texto incompreensíveis, onde não posso ter qualquer acção." 

"Um texto bruto como São Paulo", junta Silva Melo, que fala de hipnotismo e de mistério para se referir à imaterialidade que é contemplada por todos os textos místicos. "Aqui, o corpo é o sujeito pleno do texto."

No fim do ensaio, quando Silva Melo grita por Pedro, não está a chamar pelo apóstolo que nos ajudaria a lidar com a mensagem daquele que morreu por nós. Chama pelo assistente, pedindo-lhe que deixe cair a cortina que vai deixar entrar a luz vinda da rua. E outra vez somos lembrados que não passou tudo de um jogo de teatro.

Herodíades

LISBOA Teatro da Politécnica. Rua da Escola Politécnica, 56. Reservas:

961960281. Amanhã e quarta, dia 18, às 21h; quintas, sextas e sábados às 19h. Entradas a 10 euros.

*O espectáculo Due Lai (a partir dos textos Erodiàs e Mater Strangosciàs de Giovanni Testori), de Federico Tiezzi e com Sandro Lombardi esteve no TNSJ em Maio de 2001 no âmbito do festival PoNTI

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