Jerusalém a arder

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A cruz, a coroa de espinhos, o hijab, a circuncisão, o Shabat, o Ramadão, o martírio: Yael Ronen põe em causa todos os signos das três religiões monoteístas

Como judia, Yael Ronen só tem de respeitar 613 mandamentos por dia. Como israelita, se for preciso, também tem de matar em nome disso - ou só se fosse muçulmana? The Day before the Last Day, que estará no Festival de Almada, é como ela vê o apocalipse, aqui, agora

É tudo muito bonito aí onde os autocarros circulam ao sábado, diz-nos Yael Ronen quando lhe ligamos para Israel - o país onde mesmo sem autocarros a circular ao sábado ela acha que tem o dever de ficar - numa bela manhã de terça-feira.

É difícil para Yael Ronen falar de Israel sem falar dos autocarros parados no Shabat - em Tel Aviv até os transportes públicos têm de respeitar 613 mandamentos por dia (e assim sendo, admitimos, embora nem tudo seja muito bonito aqui, pelo menos os horários dos autocarros não têm uma declarada agenda política de direita ultra-religiosa). Mas ainda é mais difícil para Yael Ronen não falar de Israel. Foi o que veio cá fazer há um ano, quando apresentou Third Generation (o mundo ideal em que alemães, israelitas e palestinianos conseguiam ter uma conversa sobre o avô nazi, o pai espião da Mossad e o irmão que lançou a primeira pedra da Segunda Intifada, e o mundo real em que essa conversa acabava em desastre) no Porto e em Braga, e é o que vem cá fazer na próxima terça-feira, quando apresentar The Day before the Last Day no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a convite do Festival de Almada. Tal como Third Generation, The Day before the Last Day teve estreia na Schaubühne, em Berlim, que coproduziu os dois espectáculos com o Habima National Theatre - mas não porque Yael Ronen não possa dizer o que tem a dizer sobre Israel em Tel Aviv. Pelo contrário, sublinha a encenadora (e é um sublinhado que fez o seu caminho até ao próprio texto da peça, onde a dado momento o telefone toca para uma mulher gritar: "Se tens algo a dizer, então di-lo aqui em Israel e não corras para os alemães! Não vês como eles te manipulam, esses anti-semitas?"): "Quando estreámos o Third Generation na Alemanha, houve um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros que disse que o espectáculo era óptimo, mas para se ver em Israel: porque não devíamos lavar a nossa roupa suja lá fora. Percebo a delicadeza da questão, percebo o desconforto, mas também acho que a pressão internacional sobre Israel pode ser muito útil. É imoral querer que os nossos problemas fiquem só entre nós. E a verdade é que os israelitas estão dispostos a ouvir certas coisas. Obviamente que uma peça de teatro assumidamente política nunca será um blockbuster, mas ainda tenho um público aqui, e não estou disposta a desistir dele".

Depois de ter discutido o indiscutível em Third Generation (a Shoah e a Nakba, o direito dos palestinianos a Jerusalém e o direito dos judeus a Israel, a circuncisão e a homossexualidade), não havia nada que Yael Ronen não pudesse discutir. E no entanto, depois de uma noite de ensaios, um dos seus actores telefonou-lhe a dizer que não tinha conseguido dormir. "Estávamos em pleno processo de criação de The Day before the Last Day quando o Juliano Mer-Khamis [encenador israelita que fundou o Freedom Theatre, uma companhia de teatro de combate a operar desde 2006 no campo de refugiados de Jenin, Cisjordânia ocupada] foi assassinado. Todos o conhecíamos pessoalmente, alguns dos actores trabalharam muito com ele - foi um choque", explica ao Ípsilon. A dada altura um desses actores entrou em pânico e anunciou a Yael que não queria arriscar a vida por este espectáculo, que não estava disposto a morrer como o Juliano - e que por isso não diria o que estava escrito no texto ("Porquê perder o seu tempo numa lista de espera se é possível ainda hoje converter-se ao Islão? Temos o melhor das outras religiões, valorizámo-lo ainda mais... e construímos assim uma nova religião, de fácil utilização. Expandimo-nos mais depressa, o que nos torna na marca do amanhã. É muito simples converteres-te, só demora uns segundos. Só tens de o dizer... e és um de nós. Para activar a tua religião, só tens que atravessar quatro etapas. Meca. Caridade. Rezar cinco vezes por dia. Jejuar durante o Ramadão").

Depois desse telefonema, Yael fez o que faz sempre: da vida teatro. Tudo o que estava a acontecer em tempo real acontece agora em diferido sempre que The Day before the Last Day se apresenta. A noite em claro com o fantasma de Juliano ("É exactamente como o sonho que tive duas semanas depois de ele ter sido assassinado. De repente vejo-o e quero gritar... Juliano, quem te alvejou?"), a paranóia islamofóbica instalada em todo o lado, até na cabeça de um actor palestiniano ("Tentei dizer-te que precisávamos de segurança aqui, ou de um posto de controle. Deixam entrar pessoas parecidas comigo. Qualquer um deles podia trazer uma arma (...). Quando eles não acham isto divertido, não escrevem simplesmente uma má crítica, matam-te"), e a discussão que se seguiu, quando outra actriz da peça, iraniana, o acusou de colaboracionismo ("Não queres mostrar a tua cena porque tens medo que um muçulmano te mate? Depois do espectáculo aquele tipo ali vai dizer à sua mulher: ‘Se os muçulmanos têm medo de muçulmanos, então devem ser mesmo perigosos'. E quando ela encontrar o vizinho Mohamed, pensará que ele tem um plano para um ataque terrorista na linha de metro U8").

Todas as religiões

Já era assim, em cima das feridas abertas pelo próprio processo de criação, que se trabalhava em Third Generation - quatro alemães, três israelitas e três palestinianos juntos 24 horas por dia numa residência de três semanas em que se frequentaram as regiões mais inóspitas da carne ainda viva da Europa e do Médio Oriente, e no final, entre mortos e feridos, um espectáculo de fazer mover montanhas, pelo menos para quem passou por ele. "Aconteceu qualquer coisa que não acontece sempre com o grupo que fez essa peça. Foi um verdadeiro processo de descoberta, e apesar de todas as discussões, de todas as feridas, de todos os estragos, ficámos ligados por uma indestrutível amizade. Foi um processo muito especial a nível pessoal - e muito fértil artisticamente", explica Yael. Tanto que, três anos depois dessa experiência, a encenadora reuniu praticamente o mesmo elenco (três alemães, uma israelita, uma iraniana, um palestiniano) para fazer outra viagem particularmente turbulenta, desta vez em direcção ao apocalipse. Continua Yael: "2011 foi um ano muito dramático - como se o mundo se tivesse aproximado irremediavelmente do abismo. Assistimos a mudanças significativas - a Primavera Árabe, a crise do capitalismo, os protestos em Atenas, em Tel Aviv, em Nova Iorque, em Madrid - que não sabemos onde nos vão levar. E subitamente tive muito medo do poder da religião".

É um ambiente terminal, este do dia antes do último dia. Visto de Israel, "o mundo nunca foi um lugar seguro", admite a encenadora, mas é como se agora estivéssemos perante o fim de alguma coisa (ou perante o início de "uma guerra tão destrutiva que fará o Holocausto parecer um churrasco", o que vai dar ao mesmo). Yael não quer viver nesse mundo - talvez não queira sequer viver neste. "Daqui a 50 anos, haverá em Israel uma maioria demográfica de religiosos, judeus e muçulmanos, e isso assusta-me. Quero viver num Estado secular. Não tenho nada contra a religião até ao momento em que ela se mistura com a política e se torna um instrumento de controlo e opressão - em que classifica pessoas, em que legitima perseguições, em que se torna obrigatória. É o que já está a acontecer em Israel: a direita religiosa tornou-se demasiado poderosa".

Para saber do que estava a falar antes de pôr tudo em causa (a cruz, a circuncisão, o hijab), o elenco participou em encontros com deputados de esquerda e fundamentalistas de direita, rabis e cientistas, o grupo de mulheres Machsom Watch, que documenta abusos nos checkpoints, e a associação Yerushalom, que junta colonos e palestinianos dos territórios ocupados em torno de um ADN comum: por exemplo, o facto de nem uns nem outros comerem porco.

Yael Ronen sabe que, num país como Israel, a religião é uma questão de vida ou morte: como judia, além de "só ser obrigada a respeitar 613 mandamentos por dia", entre os quais abdicar do cheeseburger e não andar de autocarro ao sábado, tem direito a "um passaporte israelita de borla, mas só enquanto esse país ainda existir". Ao contrário do futurólogo que abre The Day before the Last Day, ela não acredita em profecias, mesmo que a cena do actor que vive o pesadelo de ser acusado do assassinato de Juliano Mer-Khamis tenha antecipado, em mais de meio ano, a detenção real de Nabil Al-Raee, o director artístico do Freedom Theatre, preso desde a madrugada do dia 5 de Junho numa base militar israelita.

O que é paranormal é normal no país onde todas as histórias já foram contadas - mesmo as que ainda não aconteceram, como o apocalipse. "Há um provérbio hebraico que diz que com a destruição do Templo a profecia foi roubada aos profetas e dada aos tolos. Não tenho nenhum palpite sobre o lugar vai começar a próxima guerra. Mas tenho um desejo: espero que não aconteça aqui. Não quero ver Jerusalém a arder".

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