Anatomia de um movimento

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Noite Transfigurada faz, com Grosse Fuge, parte de um periodo da vida da coreógrafa em que a música contemporânea, de Bartók e Schonberg, dialogava com Mozart e Beethoven

Anne Teresa de Keersmaeker reencontra a CNB para um programa que revela a força interior do seu movimento intraduzível em palavras. Estreia hoje no Teatro Camões

Anne Teresa De Keersmaeker acompanha os movimentos de longe, ignorando o que o ecrã mostra. Vai desenhando por cima da mesa de trabalho as curvas que gostaria que os bailarinos fizessem ou as que imagina, que sente, que o corpo deles esteja a fazer, ou a pensar. Olha, curvada, dobrada sobre si mesma, como se quisesse assim aproximar-se de um movimento que, de seu, já tem seis anos, dez, vinte e, no entanto, se mostra tão vivo. "É maravilhoso que ainda funcione", diz. "Mas é o acaso que a faz funcionar".

No fim do ensaio, mais um de um dia que começou cedo no Teatro Camões, em Lisboa, aplaude, discreta, os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado que, a partir de hoje e até 10 de Novembro (e depois dias 15 e 16 de Novembro no Teatro Nacional São João, no Porto), são, só, depois do Ballet de l'Ópera de Paris, a segunda companhia no mundo a dançar peças de repertório criadas para a companhia Rosas, que dirige em Bruxelas desde o início dos anos 1980. E é, também, o reencontro com a única companhia para a qual criou uma peça, para além da sua.

Em 1998 a CNB dançou The Lisbon Piece, coreografia sobre a qual não fala muito, talvez por reconhecer que a peça deixava visível o desconforto que sentia em dirigir uma companhia que não era a sua. Agora, quando sobe ao palco para explicar aos bailarinos aquilo de que anda à procura, quem sobe é uma coreógrafa que consegue olhar para o seu percurso e, ainda que sem as palavras exactas para o explicar, explica-o com imagens e movimentos que vão aproximando os bailarinos da imagem que formou na sua cabeça. É assim o seu movimento, uma ideia que já é uma imagem, antes de se tornar numa imagem que produz uma ideia. "Quando ela faz este movimento, ela deve viajar", diz para uma bailarina. "Este movimento" é, "só", um passo, talvez dois, mesmo três, "mas quando ela o faz deve viajar". E exemplifica, enquanto, no palco os seus técnicos, que trouxe na mala como quem não viaja sem as fotografias de família, estão num afã com a montagem dos projectores, os músicos da Orquestra Metropolitana de Lisboa se fingem invisíveis, e da plateia as costureiras pedem aos bailarinos que se acalmem e garantem que os problemas com os figurinos serão resolvidos a tempo. Mas para De Keersmaeker é como se não houvesse mais nada à volta. E mesmo que as luzes se apaguem e as enormes árvores de fibra que sobem até ultrapassarem o tecto do Teatro Camões fiquem apenas iluminadas pelas caixas de luz de emergência, a silhueta de De Keersmaeker distingue-se na penumbra. "Preciso de mais profundidade, de mais detalhe, de mais resistência, [de movimentos], mais certeiros", diz à bailarina que a vai copiando. "More up here", e aponta-lhe para a testa para depois acrescentar que ela deve procurar uma tensão entre o seu olhar, o seu movimento, e o ponto, do outro lado do palco, onde deverá chegar. "Imagina que vais abrindo o espaço com as mãos. Como se as extremidades dos dedos o abrissem. É uma energia básica". E então, como se as palavras se tivessem tomado de energia, dá por si a terminar a frase com os movimentos que dentro da sua cabeça já há muito tomaram a forma de outros tantos corpos.

Gaze

Noite Transfigurada, a última de três coreografias que compõem o programa que a CNB apresentará, foi estreada em 1995, fazendo, com Grosse Fuge, a segunda peça deste programa, de 1992, parte de um periodo da vida da coreógrafa em que a música contemporânea, de Bartók e Schonberg, dialogava com as composições de Mozart e Beethoven. Era ainda o tempo em que De Keersmaeker procurava libertar-se da ideia de que não sabia coreografar para corpos masculinos e, por isso, havia transferido para os corpos das suas bailarinas toda a força, todas as tensões, toda uma história de confronto que desejava, ardentemente, ser de diálogo mas que acabava no silêncio mudo, seco, de movimentos que cortavam cerce na sua ambição, que se impediam de continuar, como se quisessem esconder a sua fragilidade. Estranhamente, é isto que vimos Anne Teresa fazer quando um bailarino lhe perguntou como podia resolver o que ela lhe pedia, "olhar em frente, um movimento fisicamente pessoal, feito por um corpo que quer sair de si mesmo mas que continua preso", como se quisesse desenhar "uma tensão exterior ao corpo". E então Anne Teresa parece dirigir-se para os braços do bailarino e quando este se prepara para a receber, afinal, ela estava a seguir em frente, a olhar para outro lugar, a fazer uso do que chama de gaze, um olhar "que tem tudo a ver com suspensão", mas que quem fica suspenso é quem achava que ia receber o abraço.

O movimento de Anne Teresa vive desta contradição, como se dependesse dela para se poder encontrar dentro de um espaço que ela vai dizendo que nunca está conquistado. Aos bailarinos vai pedindo "confiança". E quando lhes pergunta se eles têm alguma questão e algum deles lhes pergunta se há algo a fazer relativamente às dobras que o figurino faz, fora de controlo dos movimentos, a coreógrafa, sempre atenta ao detalhe, responde, surpreendendo, que "isso não se vai perceber quando estiverem a dançar".

O movimento que procura é outro. "Cada momento tem que ter a sua importância, vai com mais calma, ou então..." e então suspende o que está a dizer, levanta-se e faz ela própria o movimento que acaba num gesto que imita uma metralhadora. "Todos os momentos são importantes... trááá-trrrrááá-trrrááá". E explica aos bailarinos com o corpo aquilo que com as palavra não consegue concluir. "Pequenos detalhes... uma curva interior... magnífica linha... cria uma forma... traz de dentro o movimento... foca-te a partir do interior, mesmo que tenhas que fechar os olhos... faz uma diagonal...faz outra vez... olha para longe... mais para longe... como se olhassem para ela... da ponta dos teus dedos... mais sensual... muito sensual... respira... expira... mais...relaxa os teus dedos... ouve a música... usa os joelhos... um pouco mais aberto... mais... mais... não vás para trás..." E quando ainda lhe faltam mais palavras bate com os pés, faz ela própria o movimento em silêncio, sabendo que ninguém está a ver, como se fizesse o que está a dizer-lhe para fazerem: "experiencía tudo a partir do teu interior".

As três peças deste programa juntam a força anímica de Grosse Fuge, de uma violência inusitada, onde os sorrisos de esforço se sobrepõem ao prazer de dançar, à desesperança de Noite Transfigurada, peça de uma falsa candura, de amantes perdidos numa floresta, e à ilusão de perfeição de Faune.

A coreógrafa fala dos seus movimentos como se fossem "uma escultura viva", "uma fotografia que vibra", e percebemos melhor porque precisa de subir para palco e misturar-se com os bailarinos, no chão, como se não houvesse hierarquia e através deles fosse percebendo o que queria dizer com cada movimento. E, então, os bailarinos, como se falassem a mesma linguagem, fazem da "sensualidade da experiência" a sua própria existência e dão, com os corpos, aquilo que a coreógrafa define como "a forma que vive contigo". E cola-se a eles, move-lhes os braços, mostra-lhes como devem fazer, há quem se arrepie, quem se afaste um passo só para ver melhor, ou para passar a acreditar que conseguiu. E o movimento, que parecia preso à música, solta-se, surge como o contraponto de que foi falando ao longo das sessões de ensaios: "Têm que sentir. Eu tenho que sentir. Não antecipem. Não atrasem. Sintam o que estão a fazer. Respirem a partir da coluna. Aceitem o próximo movimento como sendo o mais confortável". No fim, Anne Teresa de Keersmaeker volta a mergulhar na penumbra da plateia, para mais um ensaio. O dia está longe de terminar, como o movimento está longe de poder ser explicado por palavras.

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