Felizes ou a fazer por isso

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Paulo Pimenta

Quarto encontro entre o Teatro Bruto e Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens transforma as personagens do romance em gente de carne e osso e ensaia-as para um final grande — e redondo — como um carrossel

Enche a boca quase até a engasgar, como se não fosse exactamente uma palavra mas um peixe ainda vivo e escorregadio, um peixe quase acabado de sufocar, já estragado pelo medo da morte, a debater-se obstinadamente da cabeça até à cauda como os que Crisóstomo pescará nas noites em que se imagina a ganhar não a lotaria mas um filho.

Não é exactamente uma palavra, a felicidade, e debate-se obstinadamente com a vontade que o Teatro Bruto teve de a meter à força em cima dos ombros — como numa grande festa de baptizado em que se bebeu demasiado vinho de garrafão, ou como alguém a quem saiu não um filho mas a lotaria — das personagens de O Filho de Mil Homens, arrancadas à dentada (e nalguns casos feitas em pedaços, ou na melhor das hipóteses em aviõezinhos de papel, como o próprio texto) do romance homónimo de Valter Hugo Mãe, publicado em 2011.

Tinha um final absurdamente feliz, depois de tantas desgraças, esse livro em que um pescador que aos 40 anos assume a tristeza de não ter tido um filho “ganha” o órfão de uma anã que morre desfeita pela violência desproporcional do parto e uma mulher duplamente enjeitada com quem pode finalmente constituir uma família daquelas de encher uma mesa grande e redonda como um carrossel. Continua a ser um final difícil de dizer, absurdamente feliz ao ponto de encher a boca das personagens quase até as engasgar, na peça que o Teatro Bruto ontem estreou no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e que ali fica até dia 30. A encenação, e o trabalho prévio de adaptação que Ana Luena desenvolveu primeiro no workshop de dramaturgia de Dezembro e depois nos ensaios totalmente abertos à improvisação com o grupo de actores, profissionais, semi-profissionais e amadores, fizeram por isso, com todo o wishful thinking que é necessário para acreditar que sim, tudo vai acabar bem — mesmo. E fizeram por isso não apenas nessa cena nuclear — uma espécie de refrão da peça — em que o coro de mulheres do povo se debate com a impossibilidade de dizer a palavra “felizes” como se fosse a coisa mais natural do mundo (parece exactamente o contrário: uma aberração), mas do princípio ao fim do espectáculo. “A ideia do coro dos felizes saiu das sessões de improvisação, mas também da vontade de afirmar que apesar das fatalidades incontornáveis a felicidade é uma coisa que se pode construir, que se pode orquestrar, que se pode encenar, que se pode fingir, mesmo que se morra a tentar. Há um capítulo do livro que se chama mesmo assim, Os Felizes, e é aquele com que mais me identifico. Tem essa coisa muito feminina que às tantas se diz acerca de uma das mulheres do livro — que ela queria sobreviver, nem que fosse para morrer mais tarde”, explica Ana Luena no final de um ensaio.

Também vem daí, da vontade de mostrar que é preciso haver alguém a trabalhar para a felicidade, e a empurrar os outros nessa direcção, a figura ex machina da encenadora dentro da encenação (e de narradora dentro do romance, e de maestrina dentro do concerto que, ao fundo, Peixe, o músico ex-Ornatos Violeta, congemina com o “MC” Rodrigo Santos) composta pela actriz Margarida Gonçalves. “Ao mesmo tempo, é uma projecção minha enquanto encenadora. O processo de construção deste espectáculo assemelhou-se muito a uma orquestração: como os amadores nem sempre estavam disponíveis, tive de construir a peça por partes e esperar que se encaixassem quando todos estivessem finalmente juntos em palco. Mas em geral tenho sentido que o meu trabalho está cada vez mais próximo da música, e não só porque é uma parte importante dos espectáculos do Teatro Bruto: nas minhas encenações está tudo marcado, tudo escrito, como numa partitura”, diz Ana Luena.

Verdade

Em O Filho de Mil Homens, além da banda sonora construída em tempo real que já é habitual nos espectáculos do Teatro Bruto, há ainda por cima um coro — um coro que no livro, como aponta o crítico Rui Lage num texto do programa, amplificava os “preconceitos e [a] condenação comunitária”, mas que aqui parece disposto a fazer por não hostilizar personagens já tão massacradas pelos azares mais inimagináveis. Ana Luena, que sempre leu este romance “como uma tragédia”, achou que “fazia todo o sentido” ir buscar essa figura ao template do teatro grego, e depois transfigurá-la: “Os amadores, sobretudo mulheres, que integram o coro estão aqui não para substituir 20 actores profissionais mas para dar uma certa ‘verdade’ ao espectáculo. Interessa-me muito estar com pessoas que não querem fazer do teatro vida profissional porque dão um contributo que é muito mais da ordem da presença do que da representação: trazem para o espectáculo um mundo muito amplo, e isso enriquece-o.”

No caso, é também uma questão de verosimilhança: o universo rudimentar, quase pré-histórico, de Crisóstomo (Pedro Mendonça) e Isaura (Joana Carvalho) torna-se mais credível naqueles corpos não treinados para o teatro e naquelas vozes não treinadas para a dicção. Vozes como as que se ouvem na rua, como as que se ouvem num romance tão promiscuamente próximo dos bichos e da terra que é o deste quarto encontro entre o Teatro Bruto e Valter Hugo Mãe — depois de Cratera, As Crianças com Segredos (2010), Canil (2012) e Comida (2013) —, o primeiro a partir de um texto pré-existente. Onde as experiências anteriores partiram de textos dramáticos criados por encomenda da companhia, aqui partiu-se de um material acabado que foi preciso partir, limpar — para depois reconstruir, trave após trave, como o passadiço de madeira com que Crisóstomo abre caminho no Teatro Carlos Alberto. A felicidade? É sempre em frente. 

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