Masculino, Feminino

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José Caldeira

Poderoso ensaio sobre a violência emocional, Ocidente chega ao Teatro Carlos Alberto a partir de hoje. Victor Hugo Pontes desenha com as palavras de Rémi de Vos os contornos do preconceito

Às vezes um homem e uma mulher são como dos ímans em permanente fricção. A imagem é do encenador Victor Hugo Pontes que em Ocidente trabalha com os corpos de Maria do Céu Ribeiro e Pedro Frias como se fossem cães atiçados pelo sangue ainda quente que lhes escorre pelas mandíbulas. O texto do francês Rémi de Vos, escrito em 2005, poderia ser uma amarga e negra comédia sobre a violência emocional que alimenta a relação entre este homem e esta mulher se as gargalhadas, que até podemos dar, não fossem reflexo condicionado pelo medo de que aquele homem e aquela mulher sejam, afinal, espelho de feira de nós próprios.

Estreada no ano passado, em Guimarães, e após apresentações em Felgueiras e Lisboa, esta co-produção entre as companhias Ao Cabo Teatro e As Boas Raparigas tem finalmente carreira no Porto onde estreia hoje e se apresenta no Teatro Carlos Alberto até 18 de Maio. É um murro no estômago. E logo outro a seguir, mal recuperados da metáfora criada por um texto rarefeito, que deixa quem o adapta com a responsabilidade de interpretar as intenções destas duas figuras. E depois, logo a seguir ou ao mesmo tempo, a antecipar o que vão fazer. Victor Hugo Pontes, que conheceu a peça numa leitura, em França, em 2008, fala de um texto de “aproximação e afastamento”, quase como uma parábola de tentativa e erro, feito ao nível do colchão da cama, único elemento do cenário que serve, ao mesmo tempo, de ringue de boxe e do único local onde se encontram. “O autor queria fazer uma peça feliz, onde as personagens se amassem mas, a cada tentativa, falhava”, explica o encenador. O resultado é um retrato ácido da violência que nos entra todos os dias pela televisão, pelos jornais, nas conversas de rua, cheia de insultos, de racismo, de preconceitos, de injustiça, de errância e de falsa utopia. Histórias de desamores e de desencontros construída em plano inclinado, como a falsa parede com um rasgão a fingir uma janela de onde não se avista horizonte algum, apenas a modorra de um quotidiano sufocante.

Ele e ela

O homem e a mulher. Como chegaram a esta situação-limite, a esta espécie de beco descorçoado, onde a raiva dele se aninha na ética dela? E o que neles se projecta das nossas angústias? “É um texto sobre a aceitação do outro”, começa por dizer Victor Hugo Pontes, como se tacteasse com a resposta a dúvida que assalta quem ouve de olhos fechados porque a violência dos gestos é demasiado próxima, demasiado real por ser tão epidérmica, tão tangível. “A tensão entre os dois surge de um duelo onde, constantemente em fricção, procuram tocar-se”, explica. E ele diz-lhe: “Faz-me perguntas, ajuda-me a tentar reflectir”, mas nunca chega a nenhuma conclusão. E então ofende-a. Suja-a na esperança de que essa rejeição possa, de tão exposta, tornar-se falsa, satírica, caricata, ridícula, bufa. E tudo porque, um dia, ele se apercebeu que o seu melhor amigo era árabe. Não é que ele não o soubesse antes, mas era o seu amigo antes de ser árabe. E agora ele é amigo de um árabe mas não gosta de árabes. Nem de muçulmanos. Nem de negros. Nem que a mulher possa dormir com homens que são árabes ou negros ou muçulmanos. Ou o amigo dele. “A cabeça dele está tão cheia de questões que, para ele, eram valores muito absolutos” e tudo isso, tal como a parede que sobre eles se inclina, parece estar a ruir. E então ele bebe. Muito. E bater-lhe-ia se ela não lhe levantasse a mão e lhe respondesse aos insultos com a mesma violência com que ele acha estar a insultá-la. E nós ali, entre os dois, como se não fosse nada connosco, a rir dos outros para nos desviarmos dos golpes que nos são infligidos como lâminas na carne, da qual não sabemos se a dormência que impede uma reacção é da ordem do prazer ou da culpa.

“É um texto que fala da dificuldade em aceitar o outro por ser diferente, seja a diferença sexual, religiosa ou por se ser de outro país. É um texto tenso, cuja poética reside na impossibilidade de viverem um sem o outro”. E de nós vivermos sem o outro. Por isso, as interpretações de Maria do Céu Ribeiro e Pedro Frias, em carne viva, sem artifícios, sem retórica, só corpo em cima das palavras, só discurso atirado como bofetadas de mão aberta em cara gelada são, para Victor Hugo Pontes, barómetro de um estado das coisas que não distingue contexto social, território nacional, identidade de género. Ocidente, imaginando que o título carrega em si a reflexão sobre o que ainda existe de valores – ou a proteger – perante a decadência da sociedade seria um texto com humor, onde poderíamos rir. Mas é, afinal, na sua rarefacção, nos seus diálogos curtos, na força das ideias, no conflito irresolúvel que coloca aquele homem e aquela mulher perante a difícil escolha de continuar a viver sem saber porquê, um modo de perguntar se sabemos o que queremos defender.

 

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