Bem-vindos à terra das palmeiras

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Os bailarinos de Pindorama desaparecem no interior de uma enorme manga plástica, como uma miragem SAMMI LANDWEER

Pindorama traz Lia Rodrigues de volta a Portugal para concluir um tríptico. É o Brasil que está na moda a chamar para o terreiro a vontade de dizer que nem tudo é sol

Há um par de versos no hino do Brasil que, para Lia Rodrigues, explicam (quase) tudo sobre a dificuldade de definir aquele país-continente: “Deitado eternamente em berço esplêndido/ Ao som do mar e à luz do céu profundo”. “O país viveu assim, deitado, e agora parece estar, finalmente, a acordar”, diz a coreógrafa, 58 anos, 41 deles a dançar e a fazer mover as peças “de um sistema muito mais vasto” — esse sistema ao qual o país parece agora reagir, saindo de uma letargia que existe em paralelo, mas anacronicamente, com o movimento de empoderamento que é a organização do Mundial de futebol, da preparação dos Jogos Olímpicos e da afirmação do Brasil como economia emergente, e que é uma máquina demasiado grande e invisível para se perceber. Para a coreógrafa, o que importa é que “as várias partes da sociedade brasileira vão para as ruas manifestar as suas insatisfações”. “Houve um grande período de abandono político em que o poder nunca se interessou pelas pessoas. Com o governo Lula, a ascensão das classes C e D foi um grande passo social, mas num país como o Brasil, com dimensões continentais, tudo é muito mais complexo. Estas classes ascenderam directamente para o consumo”, explica. E agora? “Não existe dinheiro para as coisas básicas do cidadão.”

Era de dança, de arte, de partilha, de “construção do sensível” que devíamos falar a propósito de Pindorama, que encerra o tríptico iniciado com Pororoca (2009) e continuado em Piracema (2011), peças que passaram pela Culturgest, em Lisboa, e pelo Auditório de Serralves, no Porto — justamente as salas onde o terceiro capítulo desta viagem será apresentado, respectivamente, de 28 a 30, incluído no programa do Alkantara Festival, e dia 31 no Serralves em Festa. Mas é difícil que assim seja quando as imagens que chegam do Brasil misturam a liberdade de um movimento cru, carnal, sedutor e primário com a violência das manifestações que exigem que o investimento feito nos estádios seja acompanhado de melhor educação e de mais segurança

“De mais país”, resume Lia. Um país que um dia se chamou Pindorama, que em tupi significa “terra das palmeiras” — era assim que os índios chamavam ao território onde viviam e que um dia se viu ocupado por homens que ali chegaram em caravelas e entraram pelas terras dentro indiferentes ao que já lá havia. Foi há mais de 500 anos, está nos manuais de História e, no entanto, a História repete-se. “As questões políticas não são acompanhadas de um lado social. Não pode haver apenas acção policial, tem de haver também acção social”, diz a coreógrafa que nunca deixa de falar, por mais distante que de lá esteja (como agora, que nos atende o telefone num quarto de hotel em Dresden, na Alemanha), do interior da favela da Maré, a maior do Rio de Janeiro. Ao todo, 165 mil habitantes: uma cidade no interior da Cidade Maravilhosa, onde Lia Rodrigues ajudou a construir um centro de artes que é também a sede da sua companhia de dança.

Há uns meses, foi nesse centro, um antigo galpão que parecia esquecido por todos menos pelos pombos e pelos cães, que o poder político se juntou aos que realmente mandam. Em frente aos cartazes de Pindorama, polícias de metralhadora em riste guardavam a entrada daquele que é hoje um exemplo de solidariedade e de resistência no coração das trevas. “A pacificação das favelas”, explica Lia, “está ligada ao retomar de um território que estava nas mãos dos traficantes, porque há um medo do Governo de que as coisas na Copa desandem”. Esta “militarização dos espaços populares”, esta ocupação de um terreno já ocupado, repete-se incessantemente e é aquilo que a coreógrafa quer contrariar e que sustenta Pindorama, exercício poético sobre o verbo “outrar” — “a visita a um outro sem deixar de ser você”.

Miragens

Mesmo que Lia Rodrigues acredite que a dança que faz “não pode viver condicionada pela responsabilidade política”, e que não é esse o seu papel, o que tem vindo a fazer ao longo dos anos vai olhando para o longo processo de construção da identidade do Brasil e sugerindo que é possível, do interior desse exotismo que a distância temporal cria, evitar a repetição dos mesmos equívocos. Se Pororoca era o termo que os índios davam ao encontro do rio com o mar, criando a partir da onomatopeia uma palavra mais grandiosa, e Piracema era o nome que davam a si mesmos, Pindorama, sendo nome de terra é, por isso mesmo, nome de chão e de presença. O que existia delimitado nos dois outros tomos sumiu para que a visita a um outro aconteça. Os bailarinos, nus, desaparecem no interior de uma enorme manga plástica cuja incessante movimentação os sujeita a violentos movimentos de resistência. Os espectadores, torneando este corredor de luz crua, esforçam-se por identificar as presenças e acotovelam-se para ensaiar projecções de significados numa coreografia que está constantemente a fugir-lhes.

Pindorama é como a vida, esclarece Lia: não vemos tudo, há coisas que só podemos imaginar. Mas é na intuição, na construção, no cruzamento, “no desejo de conhecer”, que o movimento se vai revelando, como se a sua presença fosse, também ela, uma espécie de miragem. O palco da peça é, de resto, como um terreiro onde se faz um “despacho” (o termo usado no candomblé para resumir a reunião dos elementos necessários para um ritual); a dança é aqui um veículo, tal como, num ritual, o babalorixá, o zelador de santo, é o corpo através do qual o espírito comunica. É mais um verbo importante, comunicar: Lia não quer que os seus espectáculos sejam um manifesto, porque o que quer provocar no público não é a adopção do que pensa mas a construção de uma coisa nova. Essa coisa que a dança faz, essa possibilidade que o toque, ou a recusa dele, pode criar, é o que interessa a uma coreógrafa que atira os corpos dos bailarinos e dos espectadores para o mesmo caldo cultural e referencial e que, a partir de uma massa que não tem nem nome nem identidade, começa a dar forma a narrativas individuais através do modo como uns e outros vão reagindo à presença de olhares tão diferentes.

Mais do que comer

“Outrar” será então ouvir e ver e ler e dançar o outro, estar na sua presença, escutá-lo e ensaiar modos de percepção. “O modo como a gente cria já é, de alguma forma, um manifesto. Até o modo como continuamos”, acredita Lia Rodrigues. Pindorama, no seu desejo de articulação com as duas peças anteriores da trilogia, mas também no modo como desafia a possibilidade de constituição de um lugar de encontro, é uma coreografia cheia de armadilhas e de expectativas. “Quis que fosse um lugar de experiência”, explica a coreógrafa, que aqui recupera modos de pensar o movimento vindos já de trás — por exemplo de Aquilo de que somos feitos (2000) e Encarnado (2005), em que o seu interesse pela metamorfose dos materiais (e do corpo como primeiro material) se impunha a uma significação linear.

Há na crueza com que este movimento “exposto e violento” se pode constituir como uma paisagem que pede para ser habitada por quem a vê um desejo de fugir à aceitação tácita do ritual, do ordenado, da regra, da submissão como essência da existência. Eis-nos de volta a este Brasil sob protesto de 2014: “É uma trama de escolhas feitas anteriormente, é o sistema financeiro em que estamos vivendo que fazem com que a desigualdade permaneça desse tamanho.” Do tamanho de um país que é do tamanho de um palco, que é do tamanho do desejo de pertença, que é do tamanho da simples vontade de estar ali. Do tamanho, afinal, da ideia de que “uma vida é mais do que comer, é ter um lugar sensível, que é o lugar possível onde a sensibilidade se expande”.

No fim de contas, com a Copa à porta e os polícias dentro de casa, com a economia fora da carteira e a falta de tudo a ser sacudida pelo corpo, Lia lembra-se de uma canção dos Titãs que resume, provavelmente tão bem quanto aqueles versos do hino, a razão pela qual o Brasil não se explica: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída/ Para qualquer parte// A gente não quer só comer/ A gente quer comer/ E quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Pra aliviar a dor”. 

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