O grande cinema do novo mundo

Foto
"Meeks Cutoff", de Kelly Reichardt DR/Thunderegg LLC

Não sabemos se a presença de Quentin Tarantino como presidente do júri de Veneza terá inspirado o comité de selecção, mas é da América que têm vindo os melhores filmes que temos visto na competição oficial. Depois do excelente "Somewhere" de Sofia Coppola, a noite de domingo trouxe duas pequenas jóias que saltaram imediatamente para o topo da corrida ao Leão de Ouro - que não podiam ser mais diferentes uma da outra e, contudo, tão semelhantes no modo como falam da indivíduo e da comunidade, como reconhecem no passado pistas para explicar o presente. E, sobretudo, como se colocam deliberadamente (e felizmente) a contra-corrente de tudo o que esperamos quer do cinema independente americano quer do cinema latino-americano actual sem nunca perderem de vista a sua identidade.

A caravana perdida

O primeiro, e mais soberbo, começa por parecer um western revisionista dos anos 1970 - e a sua realizadora, Kelly Reichardt, nunca escondeu a sua evocação do cinema americano dessa década de mudanças - mas "Meek's Cutoff" (competição) é um objecto à parte. A realizadora de "Wendy & Lucy" conta o percurso de uma pequena caravana de pioneiros em direcção ao Oregon em 1865: três casais religiosos e o seu guia fanfarrão que se separaram da caravana principal e se encontram perdidos, à busca de água.

Tudo se joga num modo de animação suspensa, como se todas estas personagens estivessem num limbo, num purgatório onde expiam decisões, escolhas, opções, pecados. Reichardt acompanha a subida da tensão à medida que se começam a abrir fracturas no pequeno grupo, repartido entre o estoicismo, o histerismo, a teimosia, a fé ou a segurança. Fá-lo de modo difuso, atmosférico, evocativo, filmando as paisagens com um olhar ao mesmo tempo desolado e fascinado, construindo a sua narrativa por texturas mais do que por estruturas convencionais (o design de som, por Leslie Shatz, colaborador habitual de Gus van Sant, é sublime).

E quando damos por nós estamos no meio de uma meditação oblíqua sobre a comunidade, sobre o medo, a incompreensão, o outro, feita à medida dos nossos dias. É da América que a realizadora nos fala - da América de ontem como da de hoje, talvez da de amanhã.

"Meek's Cutoff" é o melhor filme de Kelly Reichardt e o melhor filme que vimos nos primeiros cinco dias da competição de Veneza, seguido de muito perto por um outro que também confirma espectacularmente o talento de um jovem cineasta do continente americano.

Crónica de uma morte anunciada

Da desolação árida das paisagens do Oregon passamos para o terror do Chile sob Pinochet. E nada de confusões, "Post-Mortem" (competição) é um enormíssimo filme de terror - não porque haja zombies, vampiros ou outras criaturas sobrenaturais, mas porque não há nada de mais aterrorizante do que aquilo que um homem pode fazer a outro homem.

O chileno Pablo Larraín já tinha entrado por esse caminho em "Tony Manero", mas vai mais longe e de modo mais insustentável em "Post Mortem", que se passa nos poucos dias imediatamente antes e depois do golpe que depôs Salvador Allende. Segue o percurso de um pacato funcionário da morgue de Santiago encarregue de tomar nota dos resultados das autópsias e nutre uma paixão não correspondida pela vizinha da frente, e o modo como a súbita mudança política o afecta. Larraín volta a sondar os recantos mais escuros da alma humana, embora aqui de modo significativamente mais brutal e glacial. Volta a confiar em Alfredo Castro (já soberbo em "Tony Manero", aqui infinitamente mais inquietante) para dar corpo e rosto a estes psicopatas quotidianos que, confrontados com a desumanidade que os rodeia, acabam por se lhe entregar sob a máscara da sobrevivência.

E tudo culmina num final violentamente desconfortável (mesmo que anunciado) digno de um grande clássico da Hammer. Metódico e inexorável onde "Tony Manero" era urgente e nervoso, "Post Mortem" é um osso muito duro de roer, e um grandíssimo filme - e escolher entre este e o filme de Kelly Reichardt é mesmo uma questão de gosto pessoal.

E agora um pequeno intervalo para nos divertirmos

Escusado será dizer, dificilmente alguém sairá de "Meek's Cutoff" ou "Post Mortem" bem disposto - para isso houvera na noite de sábado "Potiche" (competição), a deliciosa comédia de François Ozon sobre a emancipação de uma esposa que toda a gente vê como bibelô, interpretada com garra por uma maravilhosa Catherine Deneuve que já não víamos nestes preparos cómicos há muito tempo. O regresso à alta comédia de Ozon não é um grande filme, mas sabe ser ligeiro sem ser idiota e falar de coisas sérias sem carregar a traço grosso, e o seu olhar simultaneamente irónico e afectuoso subverte as convenções do teatro de boulevard que lhe está na origem.

E Tarantino deve ter-se sentido nas suas sete quintas com "Detective Dee and the Mystery of the Phantom Flame" (competição). É um divertido exercício de estilo no cinema popular oriental, mistério de época cruzado de "wu xia pian" tradicional, onde o mestre de Hong Kong Tsui Hark mostra como "a quem sabe nunca esquece" e recupera algum do élan dos seus velhos filmes dos anos 1980, apesar de uma sobrecarga de efeitos especiais chapa quatro. Mas se é de grande cinema que estamos à procura, é noutra direcção que temos de ir.  

Sugerir correcção
Comentar