Para compreender o amor do cinema de Jarmusch pela música são necessárias duas coisas. Conhecer a vida deste cineasta que antes de pegar numa câmara, já fazia música na Nova Iorque dos anos 70. E ver e ouvir, com atenção e imaginação, os seus filmes.
Em "Os Limites do Controlo" ouvem-se dois músicos que não fazem parte da banda sonora: Ennio Morricone e Neil Young. O primeiro "aparece" quando a personagem interpretada por Isaach Bankolé chega de comboio a uma aldeia andaluza. Um excerto de "Omens And Portents 1: The Driver", dos americanos Earth, toma conta do plano, qual actualização sombria da música dos westerns-spaghetti de Leone (curiosidades: "Acontece Uma Vez no Oeste" abre numa estação de comboio e tal como "Os Limites do Controlo" também foi rodado parcialmente na Andaluzia). Já a presença de Neil Young é menos óbvia; afinal não é o Neil Young dos Buffalo Springfield ou de "Rust Never Sleeps" (1979) que escutamos nas contribuições dos Boris e dos sunn 0))) para a banda sonora, mas o da electricidade de "Dead Man" (1995).
É tentador colocar Jim Jamusch ao lado de Quentin Tarantino, Sofia Coppola, Wes Anderson ou Martin Scorsese, cineastas que, como ele, trabalham com as memórias e os materiais do pop/rock. Uma coisa, porém, distingue-o dos seus pares: a forma sentida e repetida com que se aproxima da música (como um melómano apaixonado), atitude que não será de todo estranha se repararmos no seu percurso.
Entre os finais dos 70 e o princípio dos anos 80, em Nova Iorque, foi um dos muitos boémios que iniciou em East Village uma carreira artística. Não como realizador, embora já estudasse cinema, mas como músico e vocalista dos The Del-Byzanteens, banda de punk-funk - na época, qualquer artista que se prezasse queria fazer música e Jarmusch, que frequentava o CBGS's e o Mudd Club, não se fez rogado.
A experiência durou dois, três anos. Depois de alguns concertos (chegaram a fazer as primeiras parte dos Echo and The Bunnymen) e de um sucesso relativo na Europa, Jarmusch abandonou o grupo para se dedicar definitivamente ao cinema. A prática musical e a promiscuidade artística, porém, marcá-lo-iam para sempre. Da primeira, retirou uma "ética" de produção independente, longe dos estúdios e sem grandes orçamentos, um garage-cinema que, como o próprio explicava numa entrevista à "Les Inrockuptibles" em 1989, vinha apenas exprimir uma vontade de fazer cinema. Da segunda, recebeu uma sensibilidade particular à música urbana e um gosto ecléctico cultivado nas suas deambulações nova-iorquinas: era não só um fã dos Stooges ou dos Ramones, como da síntese de géneros ensaiada em "Sandinista", dos The Clash, da no-wave, do jazz e dos ritmos mais dançáveis do funk e rap. Um tipo de East Village, ao contrário, por exemplo, de Scorsese.
Lurie e Waits
E era ainda um tipo de East Village quando realizou em 1980 o seu primeiro filme, "Permament Vacation", que narra a deriva pela cidade de Alousys Parker, interpretado por Chris Parker, amigo e comparsa de concertos e noitadas. A música assinada a meias com outro amigo, John Lurie, dos Lounge Lizards não podia evocar melhor o ambiente da acção: ruídos da rua, o som de um trompete e ecos de um sino; um pouco de no-wave, um pouco de jazz e, pelo meio, alguma música experimental. Nova Iorque antes de Rudy Giuliani.
Com "Stranger Than Paradise" (1984) é inaugurado aquele que vai ser o registo de Jarmusch: a distribuição dos sons como texturas que se insinuam entre imagens. A partitura original - uma música melancólica e pouco "americana" feita com violino e violoncelo - é exclusivamente da autoria de John Lurie enquanto o filme torna explícito os interesses e as referências do realizador ao incluir uma canção de uma lenda do rock and roll: "I Put A Spell On You", de Screamin' Jay Hawkins.
Será a propósito da obra seguinte, "Down By Law" (1986), que o cineasta resolve explicar o modo com a música desperta o seu cinema: tudo começa nos seus gostos, afectos e descobertas musicais (eram os casos, no filme citado, do jazz, do rhythm and blues e do funk de Nova Orleãs). Lurie volta ser o compositor eleito e Tom Waits, além de interpretar um dos papéis, contribui com duas canções de "Rain Dogs" (1985). A relação revelar-se-ia eficaz (John Lurie chegou a contar com a ajuda com dois músicos da banda que havia gravado "Rain Dogs") e punha Nova Orleãs a cantar em surdina num filme sobre três homens que são presos e que depois escapam da prisão.
Lurie e Waits voltariam a colaborar, respectivamente, em "Mystery Train" (1989) e "Noite na Terra" (1991), embora com menos sucesso, antes da chegada de "Homem Morto" (1995), um western de contornos metafísicos, com Johnny Depp, e que traria os riffs da guitarra ao garage-cinema de Jarmusch. Desejoso de ouvir Neil Young no filme, "perseguiu" o músico até obter reposta positiva. A participação de Krist Novoselic e de Dave Grohl (dos Nirvana) chegou a ser pensada, mas o canadiano acabou sozinho em estúdio e compôs a música enquanto assistia ao filme. Sem canções ou sem diálogos sobre canções, ao contrário do que acontecia no cinema de Tarantino ("Pulp Fiction" tinha estreado um ano antes), "Homem Morto" confirmava Jarmusch, na sua abordagem à música, como um boémio distante e selecto e não um "enfant-terrible" educado em videoclubes, sempre pronto a piscar o olho ao espectador. Quanto ao disco homónimo de Neil Young, "Dead Man", teria uma vida para lá do cinema, influenciando músicos associados às margens do metal, como os Earth e o sunn 0))).
"Ghost Dog"/ "O Método do Samurai" (1999), foi a longa-metragem de ficção seguinte e tal como tinha acontecido em "Down by Law", a música vinha primeiro. Apaixonado por dub, jazz e hip-hop, e sobretudo, pelas misturas de RZA, dos Wu Tang Clan, Jarmusch criou um argumento e depois um filme sobre um solitário e curioso assassino profissional, conhecido como Ghost Dog (Forest Whitaker) que ouve hip-hop e cria pombos-correios. O compositor escolhido foi RZA que, depois de vários encontros com Jarmsuch, entregou a cassete que daria origem à partitura final, enquanto a edição coube ao próprio cineasta que dispôs no filme as batidas e cadências entretanto transformadas em texturas.
Com efeito, é raro encontramos nos filmes de Jarmusch sons assertivos ou espectaculares. As canções, quando aparecem, não explodem ou gritam na narrativa, como acontece em "Do The Right Thing", de Spike Lee, "Reservoir Dogs" ou "Pulp Fiction", de Tarantino, ou em "Goodfellas" e "Mean Streets", de Scorsese. Simplesmente, "desaparecem" no ambiente criado pela banda sonora original ou subordinam-se a uma sonoridade, como a do jazz etíope de Mulatu Astatke que acompanha a viagem de Don Johnston (Bill Murray) em "Broken Flowers".
Pode parecer uma opção paradoxal, atendendo à vertigem violenta e ruidosa da cultura pop, mas Jarmusch compensa-a com uma qualidade que tem faltado a muitos dos seus pares: um entusiasmo e uma atenção sempre renovada à música que se vai fazendo. Por outro lado, não está preso aos anos 60 e 70, como Scorsese (que confessa não perceber o hip-hop), e até certo ponto como Wes Anderson, nem lhe interessa fazer uma arqueologia de géneros e citações cinéfilas (o exemplo de Morricone em "Os Limites do Controle" é uma excepção). No seu cinema, como aconteceu na sua vida, a música vem primeiro (não são as aparições de Iggy Pop, RZA, Joe Strummer nos seus filmes, formas discretas de homenagem?). E pode dar a ouvir histórias e músicas que não vêm nos créditos finais.