O homem tigre continua a construir-se.
Lembremo-nos do início. "Naked Blues", o primeiro álbum de Legendary Tigerman, e "Naked Blues", o teledisco. Um quarto de hotel pouco iluminado e, nele, vários corpos de mulheres, o corpo do homem tigre e o de outro homem, exibindo androginia. Presença constante em cena, uma serpente que se passeia sobre todos eles e sobre os prazeres a que se entregam: jogo, whiskey, sexo. Isto era o início e desde esse início que a figura feminina é omnipresente no imaginário de Legendary Tigerman.
Naquele primeiro álbum, quando o velho blues do Mississípi pairava sobre a música como inspiração tutelar, vimo-la como objecto de obsessão: o ciúme em "Gonna shoot my woman", a lascívia em "Lust", a paixão em "I'll make you mine". Depois, em "Fuck Christmas I Got The Blues", segundo disco, a mulher tornou-se assombração e mistério (não serão isso as fantasmagorias de "Love train" e o grão Super 8 do vídeo que o acompanha?) Em "Masquerade", terceiro ponto de paragem na viagem de Tigerman, vimos o bluesman solitário, homem maldito percorrendo motéis de beira da estrada e lugarejos anónimos, mascarar-se de boémio urbano, libertar testosterona em forma de electricidade rock'n'roll ("Honey you're too much") e sussurrar jogos de sedução ("Let me give it to you") - como se os corpos que se haviam tornado assombração ganhassem novamente toque e textura de corpo (o dele e o delas). Entretanto recuemos um pouco.
Recordemos "In Cold Blood", livro e álbum de fotografias editado entre "Fuck Christmas, I Got The Blues" e "Masquerade" e peça essencial da iconografia do homem-tigre. Porque se o blues e as pulsões do blues, se a ideia de uma marginalidade das paixões, se o glamour de uma sensualidade exposta em filtro de cinema clássico é muito aquilo que ouvimos na sua música e que vemos nos seus vídeos, a colecção de narrativas fotográficas "In Cold Blood" (obra do fotógrafo Pedro Medeiros) mostrou-nos que havia no gesto criativo de Tigerman um desejo de subversão do seu lugar no universo blues e rock'n'roll.
Na última série de fotos do livro, num cenário de tourada mais Almodóvar que Hemingway, o predador tornou-se presa. O homem-tigre foi lidado e sacrificado com um feminino brinde de bandarilhas. Ali, retrospectivamente, percebemos um pouco de "Femina", o disco que nasceu porque Paulo Furtado imaginou um filme e, nesse filme, uma actriz, Asia Argento.
Como explica na entrevista que aqui publicamos, "Femina", o disco, nasceu de um argumento para cinema - várias histórias e várias mulheres "que se vão conduzindo umas às outras até ao momento que todas se cruzam". No centro de toda a narrativa, estaria então Asia Argento, filha de Dario Argento, o mestre do terror italiano, e "enfant terrible" cuja filmografia como realizadora explora cenários de humanidade decadente (um imaginário, digamos, "gothic white-trash"). Asia começou por ocupar o lugar da mãe, Daria Nicolodi, como protagonista dos filmes do pai, depois mostrou-se como "babe" explosiva em cinema de acção de grande produção (vimo-la em "xXx", ao lado de Vin Diesel) e virou costas a essa carreira quando a filha nasceu: "Não quero soar como uma burguesa moralista, mas comecei a pensar: ‘[mais tarde] o que é que a Anna pensará?'", explicava ao "Guardian" em 2005, quando lançou o seu segundo filme, "The Heart Is Deceitful Above All Things".
Em "Femina", Asia Argento não é aquela que conhecíamos. Ou melhor, não totalmente. Ouvimo-la em duas canções. Numa, "My stomach is the most violent of all of Italy", não há grandes dúvidas - a Asia é a imagem de Asia. Na outra, aquela que abre o disco, surpreendemo-nos. "Life ain't enough for you" revela-a terna e frágil como não julgáramos possível. Foi quando compôs essa canção, quando depois ouviu Asia cantá-la, que Paulo Furtado percebeu definitivamente que podia avançar. "Femina" seria um disco de partilhas e de descobertas e Tigerman tinha ali a primeira. Restava-lhe avançar.
Tudo em aberto
O "Femina" que é agora editado tornou-se, assim, uma digressão. Houve as viagens elas mesmas, entre Madrid, Barcelona, Roma, Paris, Berlim, Amesterdão, Bergen ou Austin, mas essas, que acompanhamos em "On The Road to Femina", "making of" assinado por Jorge Quintela, foram menos importantes do que o espaço de intimidade nascido, olhos nos olhos, com as mulheres a que o Tigerman ofereceu cenários onde conduziu (nas curtas-metragens que acompanham a edição especial do álbum) e se deixou conduzir (na música).
Asia Argento sugeriu que filmassem em Il Serpentone, utópica urbanização comunitária construída no início da década de 1970, nos arredores de Roma, e Furtado assustou-se: "É um paraíso que correu mal e que acabou transformado num enorme e ameaçador prédio bairro de lata". Encontrou Peaches em Lisboa, vindo de directa dos Açores - "Andei de ilha em ilha e os voos atrasaram oito horas" -, e não teve cabeça para mais do que seguir as indicações da hiperactiva canadiana: "Ela mudou tudo [na canção]. Começou a ‘desatinar' com algumas partes, a querer uma letra nova. Eu só dizia que sim, que fôssemos em frente. Fomos. E resultou bem". Lembrou-se de aproveitar a espontaneidade de Phoebee Killdeer, de Phoebee Killdeer & The Short Straws, e juntos gravaram uma canção, "& then came the pain" que nasceu de uma provocação. "Via essa canção como um dueto clássico, com jogo de contraponto, que mostrasse uma relação com uma certa dose de cinismo. Mas para funcionar tinha de ser gravado na hora". O que ouvimos - as réplicas dela às frases dele, as provocações dela perante os versos dele - foi o que aconteceu no momento em que Tigerman mostrou a canção a Phoebee. Tudo em aberto, repetimos: a melancolia de Rita Red Shoes, o brilho clássico de Becky Lee, a falsa discrição de Maria de Medeiros, a vivacidade de Cibelle.
Quando olha para "Femina", Paulo Furtado não vê um álbum. Vê um trabalho inacabado, ainda em construção. Diz-nos, depois, que o ângulo de ataque para as curtas-metragens que realizou, mais vídeo musical experimental do que exercício narrativo, consistia no recriar da atitude "descomprometida e descontraída de filmar passeios de família com Super 8" - "uma família imaginária", acrescenta. "Femina" será, então, a colecção de polaroids dessa nova família que o Tigerman descobriu em viagem.
O homem tigre continua a construir-se.