Não comia, despejava baldes de água fria sobre si próprio, concentrava-se "em ser magro". É o pai do apocalíptico "A Estrada". Fala-nos do seu "Método". E o realizador John Hillcoat explica as suas dificuldades: adaptar ao cinema o livro de Cormac McCarthy
O realizador australiano John Hillcoat gosta de "filmes de género". A sua abordagem, no entanto, é diferente da de outros cineastas. Quer esteja a fazer um drama de prisão ("Ghosts... of the Civil Dead"), um "western" ("Escolha Mortal") ou o seu mais recente filme - o drama pós-apocalíptico, "A Estrada", baseado no romance de Cormac McCarthy -, luta pela autenticidade.
"A única coisa de que gosto como espectador é ir ver um filme e perder-me naquele mundo", diz Hillcoat, 48 anos. "Se tomo consciência do que se está a passar, é porque a coisa não está a resultar. Daí que, em 'A Estrada', que para mim é um filme de época situado no futuro, se as personagens tivessem estes modernos dentes clinicamente branqueados, seria chocante."
Em "Escolha Mortal", ele sujou o menino bonito Guy Pearce, e em "A Estrada" (numa breve aparição) ele torna-o quase irreconhecível. Embora isto não seja nada de invulgar para Viggo Mortensen, que gosta de seguir "o Método" nos seus desempenhos e que vive na região do Norte gelado do Idaho, Hillcoat teve de ter cuidado para manter a energia do actor.
"Descobrimos maneiras expeditas de fazer a coisa parecer real", explica. "De qualquer modo, também o facto de filmarmos no exterior traz essa rudeza ao de cima nas pessoas. Não era tudo maquilhagem. Aquilo era emoção verdadeira e provação. O Viggo não andava a comer três refeições por dia."
"Quando não se come muito, pensa-se de outra maneira", admite o actor, que ainda parece um jovem, aos 51 anos. "Mesmo que precisasse de comida para me dar energia, há um certo grau de auto-sugestão ao fim de algum tempo. Pode acabar por se tornar um modo emocional de ver o mundo. Essas coisas estão para além da maquilhagem. Aqui, tive de me concentrar em ser magro. 'Já chega', disse o John e, embora andasse constantemente a comer, continuei a perder peso. Se calhar foi também influência da história."
Mortensen refere ainda a sua infância como influência. "O meu pai foi criado na Dinamarca, numa quinta. Era um prodígio na pesca e no campismo e levava-nos com ele. Depois de eu fazer 11 anos, estive na Argentina, onde era Verão no Natal e metíamo-nos no carro e íamos para o Sul. Foi provavelmente de onde me veio o gosto por explorar o mundo e, quando se é miúdo, é fácil deixar-mo-nos levar pela imaginação. É o que fazemos como actores."
O homem e a mulher
No livro de Cormac McCarthy, o planeta devastado onde só subsistem tipos embrutecidos e tornados canibais é o cenário para a história de um pai e dos extremos que suporta para salvar o filho. No filme, seguimos um pai sem nome e um filho que viajam através da paisagem coberta de cinzas em direcção à costa Leste americana levando apenas um carrinho de supermercado com os seus pertences.
Encontram um ladrão negro (Michael K. Williams) e um velho (Robert Duvall), que o pai naturalmente assume que são uma ameaça, enquanto o seu filho de onze anos (o australiano Kodi Smit-McPhee) quer dar-lhes o benefício da dúvida.
Inicialmente, o que mantém a assistência interessada é a perseguição e não é diferente de um filme de zombies. Sabemos que o homem e o filho não têm abrigo nem comida e que existem bandos de gente com vontade de os apanhar e matar porque eles são a única carne que podem conseguir.
"Quando li o argumento e o livro, fiquei profundamente impressionado", recorda Mortensen. "Reconheci porque é que foi esse livro que fez todo o mundo sentir-se atraído por Cormac McCarthy. O que vai acontecer àquela criança quando o adulto desaparecer? Por muito que pudesse fazer-nos pensar sobre o modo como estamos a maltratar o ambiente com a guerra e a poluição, não é verdadeiramente um livro sobre isso. Esse é apenas um cenário que funciona como dispositivo para exagerar esta preocupação universal. Como é que estas pessoas lidam com a situação? Que decisões morais têm de tomar ao longo do caminho. É complicado, não é claro em todos os casos. É interessante."
"Para mim, a maior dádiva foi obter o material antes mesmo de o livro ser publicado", salienta Hillcoat. "Se já tivesse sido publicado e se o Cormac já tivesse ganho o Pulitzer, não haveria maneira de ter sido envolvido nisso." Mesmo assim, adaptá-lo foi tremendo.
"No livro está tudo dentro da cabeça do pai. É tão poético, e a utilização da língua pelo Cormac é espantosa, por isso a questão era tentar encontrar modos de interpretar tudo isso e, ainda assim, permanecer fiel ao espírito daquilo que está implícito. Eu nunca tinha compreendido inteiramente a que ponto os filmes são físicos. Está-se a assistir a tudo. E isso altera os dados. Em última análise, tive sorte por o Cormac ser tão prestável. Ele compreende o que é um filme e percebe igualmente como é diferente. Ajudou a aliviar a minha ansiedade, portanto eu não podia ficar intimidado."
Uma das decisões morais chocantes no livro é a da mulher do homem: opta por morrer rapidamente em vez de deambular através de um mundo onde parece inevitável que seja torturada e violada. No filme vemos mais sobre ela (Charlize Theron).
"Compreende-se a escolha dela de não continuar", diz Mortensen. "Ainda que a minha personagem não concorde com isso, ela não quer ser morta de forma brutal. Compreende-se o seu ponto de vista, ao passo que, ao ler o livro, a sua posição era errada ou de cobardia."
Quando o filme teve a sua estreia no festival de Veneza, os fãs do livro de McCarthy não gostaram das cenas com a mãe que foram acrescentadas.
"A Charlize é uma actriz séria. Penso que não entraria no filme apenas para o ajudar a vender ou para ser deleite para os olhos", refere Hillcoat. "A ideia de o homem perder a mulher, o amor da sua vida, e de o rapaz perder a mãe, para mim não estava suficientemente desenvolvida no livro. Para além de lidar com o filho, o homem é assombrado por ela. Ela é quase um fantasma. Queríamos lembrar constantemente o que eles tinham perdido."
Viggo e Kodi
Mesmo que não seja por mais nada, vale a pena ver o filme pelo desempenho do intrépido Mortensen, que frequentemente permaneceu à mercê dos elementos por mais tempo do que era preciso e que até despejava baldes de água fria sobre si próprio. O jovem Kodi, por vezes, mostrava-se um pouco hesitante.
"O Viggo tinha a atitude física de um grande urso e, sendo adepto de 'o Método', ele simplesmente vivia e fazia a coisa", recorda Hillcoat. "No riacho, quando estava a lavar a cabeça ao filho, e era um riacho verdadeiro e estava-se em pleno Inverno, o Kodi ficou enregelado e não se queixou, apenas começou a chorar. Soube mais tarde que detesta o frio e que este era o tipo errado de filme para ele fazer. Eu ia a gritar 'corta', mas, nessa altura, ele começou a dizer a sua fala. Estava a desempenhar a cena, portanto eu não podia interferir. É um dos momentos de que mais gosto e é muito terno, como uma cena da Madonna com o Menino, com o Viggo a segurar o Kodi, que continua a chorar. O pai do Kodi avançou, mas depois decidiu não os perturbar e recuou de novo, o que foi notável. Foi capaz de ver que o Viggo estava a acalmá-lo. Isto passou-se cedo nas filmagens e reparei que a partir desse dia a dinâmica se alterou. O Viggo quase se tornou uma mãe para o Kodi, apesar de ter o papel de pai."
Tradução de Rita Veiga - Dito e Certo