Cinco anos depois de "A Lula e a Baleia", Noah Baumbach regressa à grande forma com "Greenberg", história de um chato à procura de si próprio numa Los Angeles herdada do cinema americano dos anos 1970. O cúmplice de Wes Anderson explica-se, numa conversa durante o Festival de Berlim
"Na vida real, os momentos importantes raramente se anunciam, raramente se chegam ao pé de nós a dizer 'agarra isto', 'faz isto', 'as coisas vão melhorar'. As coisas não costumam acontecer assim. O que me interessa são as transições nas vidas das pessoas. Quando comecei a escrever 'Greenberg' e me perguntavam no que é que estava a trabalhar, respondia que estava a escrever sobre uma pessoa que atravessa uma crise mas não sabe que a está a atravessar."
A pessoa em crise, esclareça-se já, não é Noah Baumbach, 41 anos, realizador, argumentista e actor nova-iorquino, cúmplice de Wes Anderson (com quem escreveu "Um Peixe Fora de Água", 2004, e "Fantástico Sr. Fox", 2009), autor do aclamado "A Lula e a Baleia" (2005), marido da actriz Jennifer Jason Leigh, sósia de Adrian Brody. Baumbach pode ser um entrevistado tentativo, com respostas pára-arranca enquanto procura a maneira certa de explicar o que tem na cabeça, mas sabe o que está a fazer e o que quer dizer.
A pessoa em crise é Roger Greenberg, a personagem do novo filme de Baumbach, "Greenberg", esta semana nas salas portuguesas. Greenberg é interpretado por um Ben Stiller impecável, escolhido por ser "alguém capaz de viver e habitar o papel mas também alguém que soubesse quando estava a ser engraçado sem o querer ser a todo o custo".
A imagem de marca picuinhas e neurótica do actor assenta que nem uma luva à personalidade abrasiva da personagem (embora originalmente Baumbach a tivesse concebido "dez anos mais nova"), porque Roger Greenberg é um chato. Um daqueles tipos ressabiados que acha que todos lhe devem e ninguém lhe paga, que passa o tempo a enviar cartas de reclamações a empresas por picuinhices, que procura recuperar o seu momento de glória em que a sua banda rock quase atingiu o estrelato... e que ele próprio sabotou.
Agora, anos mais tarde, Roger regressa a Los Angeles para passar algum tempo em casa do irmão enquanto este está fora, para reatar relações com o pessoal do seu passado (que não é certo que ainda queira saber dele...). E "Greenberg" é sobre esse regresso e o modo como o chato se recusa a aceitar quem é - até já não ter outra hipótese.
Variações
Baumbach explica: "Interesso-me geralmente por personagens que têm uma ideia de si próprias, ou uma ideia de como gostariam de ser vistas pelos outros, que contrasta com quem elas são realmente, e pela luta que isso leva as pessoas a atravessar. É um dos temas principais de 'Greenberg': aceitarmo-nos tal como somos, compreender que é bom sermos quem somos em vez da pessoa que tínhamos planeado ou que queríamos ser. Conheço muitas pessoas que se sentem frustradas, que em vez de dizerem que se sentem infelizes porque não têm sucesso, não são famosas ou não têm dinheiro, dizem que não têm nada disso porque não querem, porque não estão interessadas nessas coisas. É um modo de assumirem que falharam na vida. No caso do Greenberg, não é tanto uma questão de falhanço, é mais o facto dos objectivos que ele estabeleceu como sucesso serem irrealistas ou nem existirem. Ele não tem confiança suficiente para dizer que é carpinteiro, porque não dá valor a isso ou acha que os outros não darão valor a isso."
Greenberg vem a Los Angeles "não fazer nada durante algum tempo". É um piscar de olhos ao mestre francês Eric Rohmer, falecido em Janeiro, já depois do filme estar terminado. "É um pequeno empréstimo da 'Coleccionadora' [1967], porque a personagem desse filme, quando vai de férias, diz que 'vai tentar não fazer nada', embora seja uma situação diferente. Mas por estar tão interessado no modo como somos quem somos é que gosto tanto dos filmes do Rohmer. Não os soube apreciar quando era mais novo, mas há coisa de dez anos, um festival de cinema em Nova Iorque fez uma retrospectiva da sua obra, fui ver um e não consegui parar [risos]. Todos os seus filmes são variações sobre um mesmo tema, mas é um tema que nunca se esgota."
A propósito de "variações sobre um tema", Baumbach cita a literatura contemporânea americana como uma das fortes influências de "Greenberg".
"Quando comecei a escrever, pensei muito num determinado tipo de romances americanos, de gente como Philip Roth, Saul Bellow ou John Updike. São sempre livros sobre personagens masculinas que atravessam momentos de crise nas suas vidas... Esses livros são um género em si na ficção americana, geralmente até usam o nome das personagens no título: 'O Complexo de Portnoy', os livros de Zuckerman do Philip Roth, o Coelho de John Updike, se formos mais atrás o 'Babbitt' de Sinclair Lewis... Procurei encontrar uma forma puramente cinematográfica de contar uma história dessas. E também queria usar o nome da personagem como título, porque é uma personagem que está a lutar com a identidade. O Greenberg nem sequer assume a sua identidade judia, diz que é meio-judeu e por isso não pode assumi-la a cem por cento..."
Essa questão de identidade prolonga-se às outras personagens - sobretudo Florence, a assistente-governanta do irmão de Greenberg com quem ele se envolve num peculiar romance, outra pessoa que está também à procura de si mesma. Florence é interpretada por Greta Gerwig, musa do movimento ultra-indie semi-improvisado americano "mumblecore", aqui na sua estreia numa produção de "primeira divisão" - e uma estreia brilhante. O realizador conhecia-a desses pequenos filmes que diz inspirá-lo: "Sempre achei que a Greta tinha algo de especial, mas todos os filmes que ela tinha feito eram maioritariamente improvisados e não tinha certeza se ela seria capaz de o reproduzir com diálogo escrito, porque eu não improviso de todo. Convidei-a para fazer uma audição e ela foi imediatamente tão boa que quase desejei poder começar a rodar naquele mesmo instante."
Paisagens urbanas
Mas a verdadeira outra grande personagem do filme é uma cidade: Los Angeles, filmada nos tons quentes e queimados do novo cinema americano dos anos 1970 por mestre Harris Savides (cúmplice regular de Gus van Sant ou David Fincher) - ou, como Baumbach diz entre risos, "quase como se estivéssemos a rodar um filme do Terrence Malick, como um sítio grandioso e gigante, mas de um modo que me fosse pessoal".
Para o realizador, nova-iorquino de gema, "Greenberg" é o seu "filme de Los Angeles", tal como "A Lula e a Baleia" era um "filme de Brooklyn". "Em ambos os filmes, escolhi sítios que conheço e em relação aos quais tenho sentimentos muito específicos - ruas por onde passo, restaurantes onde costumo ir. A Jennifer [Jason Leigh, esposa, igualmente produtora do filme] é de Los Angeles e foi com ela que comecei a ver a cidade de um modo diferente das minhas visitas profissionais. Quis pôr no écrã o modo como estes sítios são pessoais para mim."
E esse modo tem tanto de crítico como de apaixonado. Crítico, porque "Los Angeles é um sítio onde muita coisa está a acontecer à nossa volta sem que façamos parte disso, porque toda a gente guia, toda a gente passa o tempo no carro e vê o mundo a partir do seu mundinho - e o próprio Greenberg faz isso sem saber guiar." Apaixonado, porque "tem havido grandes filmes sobre Los Angeles que admiro - 'O Imenso Adeus' [1973] do Robert Altman, 'Bob & Carol & Ted & Alice' [1969] ou 'Blume in Love' [1973] do Paul Mazursky, 'Shampoo' [1975] do Hal Ashby... Quis fazer a minha versão desses filmes, usar Los Angeles como eles o fizeram nesses filmes, apresentá-la como uma cidade verdadeira e não como um sítio de cinema... No John Cassavetes, por exemplo, a cidade é uma parte tão grande da intensidade das relações e das personagens em muitos dos seus filmes, como "Uma Mulher sob Influência" [1974]. E isso é algo que eu senti que queria tentar, à minha maneira."