A partir do livro de "As Cruzadas Vistas pelos Árabes", de Amin Maalouf, Rui Horta criou "As Lágrimas de Saladino", uma obra sobre a ética e a compaixão, o respeito pelo outro e a importância de sermos nós próprios. A estreia foi ontem no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Depois a peça parte em digressão: Montemor-o-Novo, Guimarães, Leiria, Torres Novas, Portimão e Porto.
Rui Horta desaparece por uns momentos atrás do palco. O ensaio começou e terminou à hora, foi intenso, em tempo real. Os bailarinos precisam agora dele, o tempo de se refazerem da descarga emocional que os assalta quando a entrega é total. E foi o caso neste ensaio da nova criação de Rui Horta, "As Lágrimas de Saladino", que estará em cena hoje no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa. Foi o último no Cine-Teatro do Curvo Semedo em Montemor-o-Novo, dias antes de virem para Lisboa, num final de tarde de temporal. De portas fechadas à chuva e ao vento, o tempo como que parou para ali dentro nascer algo que a tempestade, sempre presente, inspirou.
As primeiras palavras falam, aliás, de uma tempestade. São palavras de Saladino, sultão do Egipto e da Síria, senhor de poder ilimitado quando chega, num dia de 1187, com os seus milhares de soldados e emires, a Jerusalém, para acabar com um século de ocupação cristã. É um corpo, uma voz em cena, que fita quem o escuta. Diz Saladino que ele próprio é mais forte do que uma tempestade - porque uma tempestade chega e destrói, e ele tem o poder de escolher. E escolhe não destruir. Usa o poder não para vingar a ocupação, mas para poupar as pessoas, as diferentes crenças e religiões e os tesouros da esplendorosa cidade.
Os movimentos dão corpo ao caos de Jerusalém, uma cidade multicultural, uma pequena Babel - em pleno Alentejo. Sete corpos movem-se para chegar aonde a palavra não chega. Abrandam nos momentos em que se exprimem pela voz. O cosmopolitismo passa nas falas dos actores e bailarinos, no som que produzem quando dizem nomes de ruas, praças e travessas de Lisboa, nos seus próprios idiomas. As imagens destes lugares transportam-nos para a história da cidade, para a sua memória, as suas figuras. Pode ser Lisboa, ou Jerusalém. Em checo, húngaro, italiano, espanhol e outras das línguas das suas sete nacionalidades. "Nas suas vozes, com os seus sotaques, nos seus idiomas, [o texto] não é decifrável do ponto de vista do entendimento, mas plasticamente traduz as sensações que eu queria", salienta Rui Horta. "Não é para entender, é para sentir."
Cidades sem fronteiras
Suécia (Marcus Baldemar), Itália (Sílvia Bertoncelli), Espanha (ou País Basco), (Noemí Barták), Polónia (Katarzyna Sitarz), República Checa (Vít Barták), França (Gilles Baron) e Hungria (Milan Újvári) - os quatro bailarinos e as três bailarinas de "As Lágrimas de Saladino" deixaram os seus países de nascença ou de trabalho para passarem quatro meses no Convento da Saudação, o Espaço do Tempo, centro multidisciplinar de pesquisa e criação que Rui Horta fundou há dez anos na pequena cidade alentejana de Montemor-o-Novo. "Entregaram-se", resume. A peça gira à volta dessa dedicação, "desse lado de carne viva, de gato selvagem" que só se consegue "se as pessoas forem pessoas, estiverem próximas umas às outras e se entregarem à obra".
Para a peça mais política que Rui Horta criou até hoje - "há um grito dentro de mim", diz, um protesto contra "este momento" -, o coreógrafo fez a selecção a partir de um grupo inicial de 1400 candidatos, que passou a 180 numa audição em Paris. Em Lisboa, estiveram 60 bailarinos. Um longo processo, por ser o mais democrático e mais transparente, explica, mas também porque tinha "uma enorme necessidade de grandes intérpretes". Escolheu-os "por serem quem eles são" e por concentrarem múltiplos talentos. São bailarinos mas também actores, alguns acrobatas, vindos do circo; alguns também começam a emergir como coreógrafos, como criadores. E têm uma voz que por momentos se substitui ao corpo, na expressão da inquietude, da incerteza, da fuga ou da afirmação. "Formam uma equipa muito rica do ponto de vista criativo", frisa Rui Horta. "E isso desafia-me a mim próprio", diz o coreógrafo e bailarino, com uma carreira que passou por Lisboa, Nova Iorque, Frankfurt e Munique.
Os sete corpos em palco podem ser sete personagens. Ou muitas mais, se cada uma se desdobrar noutras. "São sete híbridos, personas, a meio caminho entre a personagem e eles próprios", sugere. "E esta é a sua força, são eles mas também são personagens que eu quero que eles sejam."
Com "As Lágrimas de Saladino" - segunda de três criações como artista associado do Centro Cultural de Belém, para esta temporada (a primeira foi "Talk Show" em Outubro, a terceira será "Local Geographic", em Maio) -, Rui Horta esbate de novo a fronteira entre dança, teatro e performance, numa mistura que caracteriza o seu trabalho e que o fascina. "O que é maravilhoso na dança é ser uma linguagem extremamente moderna, no sentido em que o público constrói a sua peça, é transformador da peça." E conclui: "As pessoas vão ver coisas muito diferentes."
A haver um único tema capaz de definir esta obra, será o tema da metrópole, da grande cidade, o único território "onde não há fronteiras". E também a ideia de que "as sociedades mais ricas são as mais anárquicas". Numa grande cidade, não se pode controlar tudo, como não se controlam as tempestades.
Electrónica e filarmónica
Ao juntar num mesmo palco intérpretes de música contemporânea (misturando processamento de sons electrónicos com instrumentos de sopro, piano, guitarra eléctrica, percussão e uma "turn-table" de DJ) e a centenária Banda Filarmónica da Sociedade Carlista de Montemor-o-Novo, Rui Horta cumpriu "um velho sonho". E isso mesmo diz aos músicos presentes quando lhes agradece e marca novo encontro para o ensaio em Lisboa, já a meio da semana.
É um sonho relacionado com o projecto cultural que desenvolve em Montemor-o-Novo, mas também com uma ideia de estética: "A estética de uma banda filarmónica é extraordinária, é de uma autenticidade, de uma pujança, de uma vitalidade...". A Carlista junta músicos amadores, "filhos da terra" que trabalham e regressam a Montemor-o-Novo à noite para os ensaios da banda. Também aqui há entrega.
"Fandango", com que abre a peça, é um original do repertório da banda. Duas obras, "Fanfarra de Saladino" e "World Tune", foram criadas por João Lucas, compositor a quem Rui Horta pediu "para estar dentro da estética contemporânea sem limitações, e ao mesmo tempo saber criar para uma banda filarmónica". "O grande desafio é juntar a tecnologia e os instrumentos de sopro tradicionais das bandas filarmónicas", completa o maestro Sérgio Frazão. O músico lembra que poucos acreditavam que esta fusão fosse possível. Mas quando a banda foi convidada para o primeiro concerto no espaço do convento, "as pessoas ficaram muito admiradas" e começaram a acreditar que era possível.
Quando e onde o corpo não chega, é a palavra que vai. São textos recitados, em fragmentos, ao longo da peça, escritos por Rui Horta e Tiago Rodrigues e inspirados no décimo capítulo de "As Cruzadas vistas pelos Árabes", do escritor libanês Amin Maalouf. Este capítulo retrata a chegada de Saladino a Jerusalém e as suas lágrimas, no momento em que se recolhe junto dos que o seu exército matou. São palavras de política e de violência, questões ancestrais, memória, ética, compaixão. Alguns são discursos inflamados. Também eles ditos e interpretados nas línguas dos actores. Também eles pensados para serem sentidos. Por vezes em estado de ira ou desespero, ampliados por microfones que entram e saem de cena, pelo som de papel que se rasga ou queima, como um sonho ou uma memória que alguém desfaz ou espezinha. "É sempre difícil comunicar. Um tem um sonho, que o outro manda sempre para baixo. E isso é sempre duro. Mas a comunicação é possível", continua o coreógrafo. Por muito difícil que seja, "há espaço para todos e esse espaço é a cidade".
Dois corpos lançam-se em sincronia, e depois em confronto, entre eles e com o som que os acompanha - depois quatro, cinco ou sete. Umas vezes completam-se, outras anulam-se. Avançam seguros ou recuam enquanto caem, invadidos ou alheios ao som omnipresente. Um microfone bate no chão como bate o coração, capta a respiração de quem corre, foge, pára, se encontra, afinal sempre soube quem era.
Um fim sem moral
A peça fala-nos da "importância de sermos nós próprios mesmo em contacto com os outros, de não irmos com o rebanho", afirma o coreógrafo. E o fim, "amoral", apenas nos mostra todas essas pessoas, orgulhosas de ser quem são, resistindo à torrente avassaladora de som que facilmente as comprimiria, indiferenciando-as, tirando-lhes a voz. Mas os sete bailarinos ali ficam, a olhar em frente, sozinhos, como que a dizer: "Isto sou eu, com a minha forma, a minha cara, a minha barriga, o meu corpo, alto, gordo, magro, barbudo, branco, azul, preto, amarelo. Isto sou eu e, neste fragmento de caos, tenho orgulho em ser quem sou. E tenho em mim uma ética e valores em que acredito".
As colunas de som juntam-se em palco aos bailarinos e músicos que regressam ao seu estado natural. A batida que invade a cena pode ser de um coração, libertadora, ou de uma máquina, destruidora.
A esta hora em que o começo de noite acalma o temporal, também o fim do ensaio acalma a exaltação da peça. As palavras que o coreógrafo escreveu sobre ela ecoam, quase silenciosas, nos nossos ouvidos: "Mais tarde ou mais cedo o vento voltará a soprar. E voarão casas, árvores e os corpos dos mais leves e incautos. Voarão em estilhaços os nossos sonhos, bem como as portas que deixarão os nossos celeiros vazios. Depois voltará a calma e o único ruído que se ouvirá será a dança das moscas. Vai custar a perceber por que é que tanta coisa que amávamos desapareceu sem deixar rasto."