"O Estranho Caso de Angélica" abriu hoje a secção Um Certain Regard.
"Tão anacrónico, tão anacrónico, que chega a ser interessante" - voz brasileira, um jornalista na conferência de imprensa de "O Estranho Caso de Angélica", de Manoel de Oliveira, que abriu hoje a secção Un Certain Regard. Podíamos acrescentar: tão anacrónico, tão anacrónico, que abafa como uma estufa, a claustrofobia é das mais cerradas dos últimos Oliveira.
O argumento daquele que é um dos projectos que Oliveira mais lamenta não ter realizado no tempo certo, e que conta a história de um fotógrafo chamado para perpetuar o rosto de Angélica, que acabou de morrer, foi escrito no pós-Segunda Guerra (1952). O que fazia do amor pela morta e pela morte do fotógrafo Isaac, judeu em fuga dos nazis, a hipótese de libertação dos males da humanidade.
Seis décadas depois, Isaac (Ricardo Trepa) continua a ser judeu e a ser chamado para fotografar Angélica (Pilar López de Ayala) pela última vez. Os males são outros, mas continuam. "Os judeus eram perseguidos pelos alemães, agora são perseguidos pelos muçulmanos", disse ontem Oliveira, na conferência de imprensa. Mas há mais: a crise económica, a natureza e as suas catástrofes... Como um castigo. "Tudo isso dá origem ao mal-estar de Isaac e o espírito que ele encontra, Angélica, dá-lhe felicidade." Amor de morte, amor à morte também.
Não poderemos saber que filme seria "O Estranho Caso de Angélica" se tivesse sido realizado no seu tempo. Não saberemos que soluções Oliveira teria encontrado para filmar o encontro entre Isaac e a morta, essa outra vida que a morte permitira (provavelmente não os filmaria como agora, como efeito especial.) Mas podemos sentir que algo se alterou, apesar de tudo, e que aquilo que no passado poderia palpitar com a catástrofe desse presente, pode hoje fazer figura de natureza-morta. A forma como Oliveira filma o "hoje" é das mais insondáveis: os carros são os de agora, mas o mundo de Isaac, a pensão onde vive, o guarda-roupa das personagens, tudo vem de um mundo antigo, o Portugal dos anos 40 e 50 - alguns diálogos e o histrionismo de alguns actores gritam esse anacronismo até aos limites de incómodo, e nada disso tem a ver com o dito "registo teatral" dos actores de Oliveira. Tudo isto provoca um efeito de irrisão no filme que talvez sabote involuntariamente a sensação de claustrofobia. Tão anacrónico, e apesar de tudo tão claustrofóbico, que chega a ser interessante. E frustrante.