A encenadora Ana Zamora celebra a vida com as danças medievais criadas para esconjurar a morte
A relação do teatro com o rito interessa especialmente a Ana Zamora. A encenadora e fundadora da companhia independente espanhola Nao d'Amores apresenta "Dança da Morte/Dança de la Muerte", uma produção conjunta com o Teatro da Cornucópia, onde a peça está desde terça-feira e até dia 13 de Julho. É uma das estreias na edição do Festival de Almada e o título bilingue tem razão de ser. Explica-se pela cultura comum ibérica encontrada na simbologia da Idade Média e do início do Renascimento à volta dos ritos da morte, explica a encenadora.
Neste olhar de frente o absurdo da morte, Ana Zamora vai procurar, como em peças anteriores, o lado ancestral da teatralidade e recriar o espírito de uma época. Através do estudo e da investigação das reminiscências que ficaram nas expressões artísticas e populares desse tempo, Zamora tenta "entender o espírito medieval e renascentista e recriar uma visão contemporânea". Mas nunca com a intenção de reproduzir a sua estética.
O resultado: "Um teatro puramente contemporâneo, de hoje e para o público de hoje", acrescenta a encenadora. Mas certo é que os textos, as danças com coreografia de Javier Garcia Ávila e a música tocada com réplicas de instrumentos de época (viola de gamba, fídula, mas também flauta, órgão e percussão) transportam o espectador para esse universo.
Os textos de Gil Vicente e de anónimos do século XV e XVI, associados ao texto castelhano "Dança General de la Muerte" (século XV) são interpretados em castelhano antigo e um pouco em português antigo.
Todos - desde o mais poderoso, como o rei ou o Papa, ao representante mais humilde do povo - passam por ela, a morte, aqui personificada por uma só figura, o actor Luís Miguel Cintra. E encaram-na, não como um problema pessoal, mas "como um eixo da humanidade", diz Zamora. "Há um entendimento da morte como uma aceitação espiritual global."
Não há aceitação da morte; há celebração da vida. "É uma dança da morte mas também é, na verdade, uma dança da vida", continua.
A todos, se dirige a morte: "A vossa vida é sonhar / Que a morte é despertar / Para nunca mais dormir e acordar."
As Danças Macabras eram uma forma popular de esconjurar o fim, o ciclo da vida. Assumiram uma expressão literária e plástica, na música, na dança, no folclore, sobretudo depois de 1347, quando a peste se instalou na Europa e, em dois anos, dizimou um terço da população. Havia dança um pouco por todo o continente europeu, mas na Península Ibérica tinham "um carácter específico e diferente" pelas "influências muçulmanas e judaicas".
Na peça, que regressa ao palco da Cornucópia (entre 30 de Setembro a 17 de Outubro), depois de uma passagem pelos festivais de teatro clássico de Almagro e de Olmedo, em Espanha, participam intérpretes de ambas as companhias (Luís Miguel Cintra, Sofia Marques, Elena Rayos, Eva Jornet, Juan Ramón Lara, Isabel Zamora). Alguns músicos são, ao mesmo tempo, actores. Todos, a dado momento, entram na dança ou no rito. O palco recria um espaço litúrgico, com a assistência disposta em bancos corridos como se de um coro de uma catedral se tratasse. Sobre o chão axadrezado - como o da Catedral de Segóvia - desenrolam-se os ritos populares e as danças históricas. Ainda hoje se faz a dança em cruz na Catalunha (Quinta-Feira Santa), numa das últimas reminiscências do que podem ter sido as Danças da Morte na Europa.