Há dez anos ninguém suspeitaria que uma editora de jazz de um país periférico conseguisse alcançar sucesso mundial. Hoje, a Clean Feed organiza festivais em Nova Iorque e Chicago. Um clube de Coimbra lançou uma revista de jazz que se tornou referência nacional e não pára de organizar concertos por todo o país. Definitivamente, o jazz em Portugal está a mudar
Não são músicos, mas estão na linha da frente de um novo movimento jazz e a maior fatia de responsabilidade tem necessariamente de lhes ser imputada: Pedro Costa, o rosto da editora Clean Feed e da distribuidora Trem Azul, sede da única loja de jazz em Portugal; Pedro Rocha Santos, presidente do JACC (Jazz Ao Centro Clube), associação que tem dinamizado a cena jazz a nível nacional, promotora dos festivais Jazz ao Centro e Jazz.pt. São ambos responsáveis por uma série estonteante de iniciativas que revitalizaram por completo o jazz em Portugal, proporcionando-lhe uma surpreendente visibilidade internacional.
À medida que a Clean Feed se aproxima da marca dos 200 discos editados, os elogios não param de chover. Sedimentada no mercado internacional, a editora é considerada por muitos como uma das mais relevantes na edição jazz a nível mundial: o "site" AllAboutJazz elegeu-a como uma das cinco mais importantes editoras no mundo em 2005, 2007, 2008 e 2009; a Jazz Journalists Association escolheu-a mesmo como a melhor do mundo em 2008.
Recentemente, Peter Margasak, jornalista e crítico da prestigiada revista "Downbeat", escrevia no jornal "Chicago Reader": "A Clean Feed tornou-se uma das mais prolíficas, criativas e consistentes editoras de jazz do mundo."
Apesar da maior parte do catálogo ser composta por músicos estrangeiros, a editora não esquece o talento nacional, como se comprova na mais recente fornada de discos: há os regressos de Bernardo Sassetti, Carlos Barretto e do trio TGB, as novas contratações Carlos Bica e Sei Miguel e a aposta num grupo revelação, os RED Trio.
Fundada em 2001, editou nesse ano três discos. Em 2003 o nome de Gerry Hemingway aparece numa capa e em 2004 já faziam parte do catálogo nomes grandes como Ken Vandermark ou Dennis González. Com o objectivo de documentar o jazz que se faz no nosso tempo, a editora não tem parado. O crescimento não foi planeado, conta Pedro Costa. "Nunca sonhámos ter uma coisa desta dimensão, com tantos discos editados. A ideia era editar dois ou três discos por ano, não imaginávamos isto que aconteceu." Sobre "Nocturno", disco de Bernardo Sassetti editado em 2002 que se tornou um marco na evolução do jazz português, Costa refere: "Foi o disco da nossa editora que mais vendeu até hoje. Foi uma aposta do Bernardo Sassetti que na altura andava numa indecisão para onde gravar - tinha outras propostas -, mas optou por gravar por nós e isso deu-nos um impulso importante".
Ao crescimento do catálogo seguiu-se com naturalidade o reconhecimento internacional. Foi algo que sucedeu de forma progressiva, diz Costa. "Começámos a receber toneladas de discos, fomos estabelecendo contacto com muitos músicos e, de repente, tornou-se difícil dizer que não a certos discos... Fizemos cinco, dez, depois 15 e este ano vamos editar 45 discos! Não é nenhuma visão estratégica de mercado fazer 45 discos num ano, por acaso estará mais próximo da estupidez do que outra coisa. Mas é uma paixão, é difícil resistir a tantos discos bons que nos mandam." E, como se sabe, a paixão é algo incontrolável.
Há dez anos seria impossível imaginar que uma editora especializada em jazz contemporâneo, sedeada num país periférico, numa altura em que o mercado da música está em queda, conseguisse alcançar sucesso a nível mundial. Mas foi o que aconteceu. Pedro Costa fornece a explicação possível: "Há uma crise mundial, há menos editoras a apostar nos músicos e em discos que documentem esta época. As editoras clássicas do jazz limitam-se praticamente a fazer reedições e, às tantas, existem poucas a fazer um trabalho de edição tão acutilante."
Para além de um alargado reconhecimento internacional, a Clean Feed tem sido frequentemente considerada uma das melhores editoras de jazz do mundo, factos que constituem para os responsáveis "um enorme motivo de orgulho" e ampliam a presença do seu trabalho um pouco por todo o lado. "Esta loucura de editar tantos discos, com uma participação tão grande no mundo do actual jazz ou da música improvisada, é algo que se vai tornando difícil de ignorar."
Do Cais do Sodré a Nova Iorque
Para a editora, a comunicação é essencial e, além das plataformas mais comuns, tem apostado também na organização de concertos e festivais. Tendo desenvolvido ligações a diversos festivais e ciclos de concertos nacionais, a Clean Feed investe com especial atenção na promoção externa: organiza anualmente um festival em Nova Iorque (este ano na sua 5ª edição), tendo ainda dias dedicados à editora nos festivais de Utrecht e Ljubliana, ou nas cidades de Barcelona e Madrid.
Este ano, a editora decidiu elevar ainda mais a fasquia e, além de Nova Iorque, apresentou a primeira edição do seu festival em Chicago, um dos grandes viveiros do jazz contemporâneo.
Em simultâneo com o bem sucedido trabalho editorial, a mesma equipa dedica-se à distribuição de discos através da Trem Azul, uma loja de jazz sita na Rua do Alecrim (ao Cais do Sodré, em Lisboa), a única especializada em jazz em Portugal e uma das melhores da Europa. Além das edições Clean Feed, encontram-se por lá quase todos os clássicos, modernos e contemporâneos, do jazz à improvisação livre, muitos CDs mas também discos em vinil, alguns DVDs e "merchandising". Inaugurada em Outubro de 2004, beneficiou da experiência de Pedro Costa e Hernâni Faustino. "Trabalhámos durante muitos anos em lojas de discos e sabemos que o jazz, apesar de ser um mercado específico, sempre representou algumas vendas." O projecto nasceu de uma ideia simples: "Como não havia nenhuma loja específica de jazz em Portugal, achámos que havia espaço para uma loja deste género", conta Costa.
Estabelecida em Lisboa há já meia dúzia de anos, a loja tem na especialização uma das chaves para o sucesso: "Ao mesmo tempo que houve um grande desinvestimento nesta área por parte das outras lojas, um dos nossos trunfos foi ter gente conhecedora e com experiência, para poder aconselhar os clientes".
Uma das mais recentes peças que está à venda na loja é uma T-shirt, desenhada pelo ilustrador Pedro Lourenço, com uma mensagem provocatória: "jazz is boring". O jazz é chato? Pedro Costa explica: "O que estamos a tentar dizer é que a palavra 'jazz', infelizmente, é associada a coisas que nós queremos contrariar. Se o jazz é apenas 'swing', se é perpetuar um estilo que vem desde os anos 20 e tentar cristalizar isso fazendo de conta que o que veio depois (a ausência de 'swing', a improvisação completa) não é jazz, então é mesmo chato".
Contrariando essas noções requentadas de jazz, o patrão da Clean Feed quer afastar-se dos "clichés": "Não temos nenhuma vergonha do nome "jazz", mas o trabalho que fazemos destaca-se dessa imagem comum do jazz a preto e branco, dos clubes cheios de fumo. Quando for dada liberdade ao jazz, porque o jazz é uma música livre, é uma música improvisada, então teremos T-shirts a dizer 'jazz is great' ou qualquer coisa assim. Para já, queremos contrariar esses fundamentos de que o jazz deverá ser desta ou daquela maneira." Documentando o jazz mais imprevisível, criativo e urgente da nossa época, a Clean Feed diz-nos que o jazz é tudo isso e mais além.
De Coimbra para todo o lado
No ano de 2003, no âmbito da Coimbra - Capital Nacional da Cultura, surgiu um novo festival: Jazz Ao Centro - Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Promovido pelo Centro Norton de Matos, uma associação de Coimbra presidida por Pedro Rocha Santos, essa primeira edição do festival foi composta por 15 concertos. Desse primeiro festival nasceu o Jazz Ao Centro Clube (JACC), conta Pedro Rocha Santos, que passou a liderar o novo projecto. "Esse festival criou uma dinâmica que fez com que se juntasse um conjunto de pessoas com a ideia de criar um clube independente. Em Abril de 2003, o JACC foi formalmente constituído."
Desde então, o clube tem sido o responsável pelas sucessivas edições do festival Jazz Ao Centro, este ano na oitava edição, desenvolvendo uma actividade que começou a extravasar a cidade de Coimbra.
Em 2005 o JACC aposta na criação de uma nova revista de jazz, a Jazz.pt, numa parceria com a Clean Feed: "A certa altura, a revista 'AllJazz' começou a ter problemas e nós tentámos evitar que ela terminasse. O proprietário acabou mesmo com o projecto, mas nós já estávamos tão envolvidos com a ideia de uma revista de jazz feita em Portugal que acabámos por lançar uma nova revista, a Jazz.pt, agora no 30º número". Uma ligação que acabou por se revelar fundamental para um maior envolvimento do JACC na cena jazz portuguesa", diz Rocha Santos.
Mas Pedro Rocha Santos não é homem para estar parado muito tempo. Pouco depois, surge um novo projecto, o Portugal Jazz, um festival itinerante. "Apresentámos este projecto a 270 e tal municípios, o que corresponde a cerca de 90 por cento dos municípios do continente. Foi um projecto muito trabalhoso, mas que implantou definitivamente a marca JACC a nível nacional." Com concertos de projectos nacionais e uma acção didáctica destinada aos mais novos, cada edição do Portugal Jazz termina com a distribuição gratuita da revista Jazz.pt a todos os espectadores, "com o objectivo de que as pessoas levem para casa algo que as motive a acompanhar o fenómeno jazz em Portugal".
Desdobrando-se em iniciativas, o clube de Coimbra dá ainda início ao festival da revista Jazz.pt. "Nasceu num momento em que a revista estava a fazer três anos, tendo já ultrapassado os recordes de longevidade de outras publicações nacionais sobre jazz. Começámos a pensar que tínhamos de fazer uma festa. Como a revista tem a vocação de promover o jazz em Portugal, destacando os músicos portugueses, achámos que poderia ser um bom momento para dar maior visibilidade ao lançamento de discos de músicos portugueses. No primeiro ano tivemos três lançamentos de discos e no ano passado tivemos nove. Fizemos uma grande festa no Hot Clube, no espaço do jardim que raramente tinha sido utilizado, e toda a gente ficou surpreendida com o trabalho apresentado", recorda Rocha Santos.
O mais recente projecto do JACC é uma nova editora, dedicada à edição de projectos nacionais. Através do contacto com os músicos, Pedro Rocha Santos percebeu que "havia necessidade de mais uma editora, que, neste caso, tem como missão apoiar os músicos portugueses na edição dos seus trabalhos". Surge num momento em que coexistem duas editoras, a Clean Feed e a Tone of a Pitch, mas "não visa concorrer com qualquer uma delas". Acabam de editar o disco "Lunar" do grupo El Fad, liderado por José Peixoto. Para os próximos tempos estão planeados discos de Afonso Pais e Paula Sousa.
Se a todos estes projectos juntarmos a iniciativa de editoras como a Tone of a Pitch de André Fernandes e a Creative Sources de Ernesto Rodrigues, a programação de festivais como o Jazz em Agosto (espaço para o jazz de vanguarda, programado por Rui Neves), o Estoril Jazz (palco privilegiado para o jazz "mainstream"), o Guimarães Jazz (o maior festival fora da capital, da responsabilidade de Ivo Martins), a Festa do Jazz (de Luís Hilário e Carlos Martins) e os ciclos e actividades promovidas pela Associação Granular (liderada por Rui Eduardo Paes e Carlos Zíngaro), ficamos com uma ideia da crescente diversidade e riqueza do universo jazz em Portugal.
Algo surpreendente para um género musical que era, até há bem pouco tempo, considerado marginal, vivendo de novidades e tendências importadas de outros países. Actualmente, Portugal tornou-se definitivamente um país a considerar, seja no planeamento de uma digressão europeia, na escolha de uma editora ou na procura de uma cena jazz vibrante e criativa.
Um estatuto que não dá descanso - que o digam Pedro Costa e Pedro Rocha Santos.