Nick Nicotine faz muito porque não consegue de outra maneira
Nick Nicotine acaba de nos mostrar a Praça do Mercado 1º de Maio e de nos explicar como ela deveria ter sido recuperada para servir melhor a população. Pouco depois, chama-nos para o acompanharmos até uma esquina de onde se vê a Rua Almirante Reis: faláramos do antigo Cine Clube do Barreiro, agora desactivado, e ele queria mostrar-nos o edifício e queria mostrar-nos o Alburrica Bar, esse um bem vivo centro de actividade rock'n'roll.
Nick Nicotine, ou melhor Carlos Ramos, gere os Estúdios King, gere a editora Hey Pachuco, organiza o Barreiro Rocks, toca guitarra e canta nos Act Ups, nos Ballyhoos ou nos Los Santeros. E agora fomos ao seu encontro para falar de "Ghosts And Spirits", o seu segundo álbum enquanto Nicotine's Orchestra - começou como "one man band" e é agora banda inteira tocada e imaginada por um homem só (mais os fantasmas que o acompanham).
Nick Nicotine faz muitas coisas. Faz porque não se dá outra hipótese. É uma questão de feitio: "Aparecem possibilidades e tu aproveita-las e continuas". A Hey Pachuco nasceu há dez anos porque ele tinha bandas e queria editá-las. As bandas em que toca foram-se multiplicando porque ele nem sempre tem onde encaixar novas canções. Quanto ao estúdio que gere desde há um par de anos, e onde tem gravado uma série de bandas barreirenses ou barreirenses em espírito sem o saberem (rock'n'roll espanhol ou mexicano também passa por lá), chama-lhe uma proposta irrecusável: "Foi como perguntar a um miúdo se queria um parque de diversões."
Enquanto caminhávamos pelas ruas de um Barreiro chuvoso, Nick Nicotine não se cansara de elogiar Mike Styles, cantor folk de 17 anos obcecado por Bob Dylan que considera um prodígio - quando Styles ele mesmo surge a meio da entrevista com o Ípsilon, Nicotine faz questão de o apresentar. Dois pormenores que sobressaem em Carlos "Nicotine" Ramos: gosta dos seus e gosta da sua terra, e é homem de mil projectos.
O Barreiro Rocks fora há uma semana e ele estava felicíssimo. O festival teve casa cheia, os concertos foram bons e o público regressou a casa de sorriso estampado na face. A dele continua sorridente. Não é tanto por ter conseguido tirar um dia de folga. Dito de forma sucinta, estes são bons tempos para Nicotine: "Nos últimos anos tenho tido uma vida mais regrada - teve de ser - e não tenho tido vida. Sinto que estou numa fase em que não posso desperdiçar nada, tenho que pôr cá fora muita coisa que preciso de despejar. Num sentido criativo, sinto-me como nunca antes". E portanto, o caminho faz-se caminhando. Freneticamente - aí está uma boa forma de reintroduzirmos "Ghosts And Spirits", o novo álbum da Nicotine's Orchestra. Porque é um álbum onde "despejou tudo". No bom sentido.
Há fantasmas no estúdio
Quando tocava ao vivo as canções da sua orquestra, acontecia-lhe uma coisa estranha. Entre todo o ruído e a excitação do palco, acontecia-lhe ouvir outros sons, "uns harmónicos, outros instrumentos". Mas depois passava os ouvidos por "La Trahison Des Sons", a estreia, o disco que gravara num dia, directo ao primeiro take, e faltava qualquer coisa. Faltavam os sons que ouvia nos concertos, "os fantasminhas que apareciam, os espíritos de outros instrumentos e de outros músicos". O título do novo álbum é a justa homenagem a esses convidados inesperados.
Nicotine esqueceu a ideia de "one man band" como entendida no blues, resgatou as assombrações para a sua música e dedicou-se a construir aquilo que lhe interessa: "Tenho uma pancada por canções, pelas fórmulas que as tornam canções e não composições musicais mais alargadas, experimentais ou o que quer que seja.". Estão todos em "Ghosts And Shadows": os dos Sun Studios, os da soul de Screaming Jay Hawkins, os do rock'n'roll que nunca morre enquanto Nicotines andaram pela Terra a ouvir fantasmas para lhes dar um sopro de vida.
Nick Nicotine não se refugia num dos lugares comuns do discurso de músicos sobre a sua música - que têm mil influências, que nenhuma se sobrepõe às demais e que o fazem é resultado de uma irrepreensível individualidade. "Não tenho problema nenhum em prestar homenagem", diz. Mais, ele que até escolheria como destino o futuro se lhe dessem a experimentar uma máquina do tempo - "tenho uma curiosidade pela música do futuro e tenho a sensação que será melhor: haverá mais fantasmas a alimentá-la" -, não tem problemas em olhar para trás e recolher dali inspiração. "Há dias conversava com alguém que me dizia que o mundo ainda era governado pelos mortos, porque são mais do que alguma vez seremos. Tudo o que foi escrito e trabalhado por eles é o que fica, é aquilo que temos para aprender." Diz isto e sorri. Porque, dito aquilo, não lhe interessavam revivalismos, não lhe interessa olhar para a música como guia de estilo de vida a cumprir religiosamente como se a década de 1950 fosse hoje (ou, em sentido inverso, aceitar a ditadura do futuro: "há dez anos tinha muitos amigos das raves e a imagem deles era aquilo que suponham ser o ano 3000, e a cabeça deles, num certo sentido, já estava lá").
Nada disso, a música da orquestra, aquela voz que escala paredes acima como soulman, os Hammonds que se erguem para que o gospel profano se faça ouvir, as guitarras atormentadas pelo blues e as outras guitarras entregues aos prazeres de electricidade em roda livre, tudo isso serve de retrato de um homem que, hoje, não consegue parar. Rodeia-se de fantasmas no estúdio e liberta-os para o mundo moderno. Olha em volta, para a sua cidade e para as pessoas que se vão mexendo na sua cidade e não consegue deixar de se entusiasmar. "Espero que o pessoal veja que é possível fazer as coisas acontecer. Fazer aquilo que tu queres, porque isto parte sempre de um acto egoísta: 'Eu gostava de fazer isto na minha terra'. E então 'bora". O homem quer, os fantasmas ajudam e a obra acontece.