Feito em vida de Saramago, este filme seria sempre visto como o retrato de um homem a morrer - o que se torna tanto mais impressionante porque nos mostra alguém que se sente grato por cada dia que lhe é dado viver. Numa das imagens Saramago, no alto duma montanha, diz: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio". Pilar é Pilar del Rio, a vital andaluza que arrebatou o melancólico português. Retrato de um homem e de uma mulher, portanto. Mas espelho para nós, portugueses, nos confrontarmos
Em "José e Pilar", o documentário de Miguel Gonçalves Mendes que ontem chegou às salas de cinema depois de se ter estreado no DocLisboa, há um momento em que Pilar del Rio diz que o incómodo de se deixarem filmar pelo cineasta vale a pena, porque as imagens do filme ficarão aí por muitos anos. Tendo em conta que as duas horas deste documentário foram montadas a partir de 240 horas de gravação, o incómodo não terá sido, de facto, pequeno. Mas Pilar tem razão. Os muitos portugueses que, gostando mais ou menos da obra de Saramago, embirram com a pessoa, terão mais dificuldade em antipatizar com ela depois de verem estas imagens. Como terão dificuldade em antipatizar com a própria Pilar.
A façanha do realizador não foi ter mostrado um velhinho inteligente, simpático e compassivo, que vive numa ilha espanhola, com a sua dedicada mulher, os últimos anos de um amor perfeito. O feito de Miguel Gonçalves Mendes, e é por isso que Pilar tem razões para dar como bem gastas todas as horas sacrificadas a este projecto, foi ter mostrado que Saramago e Pilar são esse casal com quem todos gostaríamos de passar uma tarde em Lanzarote sem deixarem de ser, ele, o provocador de convicções um tanto rígidas que já sabíamos que era, e, ela, a sevilhana de emoções fortes e espírito prático, controlando com determinação a agenda do marido, que já adivinhávamos que fosse.
A corruptela do título de Brecht que encima este texto pode servir para resumir o Saramago que este olhar desenha: uma boa alma, que, como as personagens da peça do dramaturgo alemão, duvida da bondade de um Deus em que não acredita, mas também da bondade dos homens. Paradoxalmente, o Saramago que neste filme diz da religião que "é uma aldrabice, pá, uma aldrabice completa", que a igreja católica é hoje "uma farsa trágica", e que faz votos de "morrer lúcido e de olhos abertos", sabendo que a única realidade é "nascer, viver e morrer", é também um Saramago atravessado por inquietações tipicamente religiosas, que quer que as suas cinzas sejam enterradas em Lanzarote para ficar perto de Pilar e que manifestamente gostaria que a vida tivesse algum sentido que a tanscendesse. Ou talvez não haja paradoxo algum, tendo em conta que, numa obra não muito extensa, dedicou um romance a Jesus Cristo e outro a Caim, descontando já as ressonâncias bíblicas da inexplicável praga que atinge a humanidade em "Ensaio Sobre a Cegueira".
Num dos mais comoventes momentos do filme, quando anda a fazer a promoção mundial de "A Viagem do Elefante", o escritor explica a uma plateia que talvez não tivesse escrito o romance se não tivesse sabido que, após a morte do paquiderme, lhe tinham cortado as patas dianteiras para as tranformar em recipientes para bengalas e sombrinhas. "Aquelas patas que tinham andado milhares de quilómetros", diz, com a voz embargada, e termina: "Não conseguimos fazer da vida mais do que o pouco que ela é".
Um homem que por acaso é escritor
Feito em vida de Saramago e estreado após a sua morte, este documentário seria sempre inevitavelmente visto como o retrato de um homem que está a morrer, o que se torna tanto mais impressionante porque o que nos é mostrado é alguém que reconhece a sua própria felicidade e que se sente grato por cada dia que lhe é dado viver. Mas é justo que o filme seja visto assim, porque a morte é um dos seus temas dominantes. Não por acaso, uma das imagens iniciais, que depois se repete pouco antes do fim, mostra-nos Saramago, no alto duma montanha, dizendo: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio".
O filme está recheado de cenas divertidas e adivinha-se que entre o que nos é mostrado e o que caiu na mesa de montagem, a presença da morte poderia ter sido bastante mais ténue se tivesse sido essa a opção do realizador. Não que Miguel Gonçalves Mendes tenha querido filmar a mensagem de um grande escritor aos vindouros. Quis apenas mostrar um homem no fim da vida e que sabe que vai morrer. Na verdade, quem não conhecer a obra de Saramago, pouco ficará a saber dela neste filme. O facto de ser um romancista e um prémio Nobel da Literatura só é aqui relevante no sentido em que essas circunstâncias se reflectem na sua vida diária.
Numa divertida cena inicial, o realizador prepara-nos para um documentário convencional sobre "o escritor na intimidade", filmando Saramago sentado ao computador, concentrado no que vê no ecrã. O escritor cruza os dedos e leva os indicadores aos lábios, na pose de quem está a agarrar uma ideia, depois levanta-se e vai pôr música clássica, como quem prepara um ambiente mais propício à escrita. Volta a sentar-se, deixa escapar um "não", e diz: "Vou ver se faço aqui um truque". Só então vemos o que está no monitor e percebemos que Saramago está a fazer uma paciência de cartas.
Adivinhamos então que vamos ver um homem que por acaso é escritor, e não um escritor que inevitavelmente é um homem. E, logo a seguir, são as próprias palavras de Saramago, ditas pela sua voz, que justificam esta opção: "A vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como andamos e olhamos, na maneira como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão", declara o romancista, concluindo: "Somos um sistema de sinais".
O país de origem
O filme é isso: a captação desse sistema de sinais. Não é uma biografia. Aqui e ali vamos tendo informações soltas do que foi a vida de Saramago, desde a infância na Azinhaga, passando por momentos marcantes, como a sua decisão tardia de se tornar escritor, o encontro com Pilar ou a desavença com Portugal após a polémica criada no início dos anos 90 com "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", mas apenas na medida em que esses instantes do passado se repercutem no presente.
Em certa medida, um dos temas fortes do filme é o da contrubada relação de Saramago com o seu país de origem, mas a única referência que temos ao episódio que "entornou o caldo" - a decisão do então sub-secretário de Estado da Cultura Sousa Lara de retirar o "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de uma lista de romances portugueses candidatos a um prémio literário europeu - aparece já quase no final, quando um jornalista português diz a Pilar que "a maior parte dos portugueses" a "olha como a mulher que levou Saramago para Espanha" e ela replica: "Não, isso foi o governo de Cavaco Silva". Esta entrevista é, aliás, um dos momentos mais hilariantes do filme, com um entrevistador obcecado com a legalização dos homossexuais em Espanha e uma Pilar crescentemente irritada e tentando manter algum compostura. "Há uma percentagem esmagadora de gays em Espanha", declara o jornalista, insistindo que esse alegado facto "deve ser complicado para a vida matrimonial" dos casais heterossexuais. "Complicado para a vida matrimonial é a barriga dos homens", responde a entrevistada ao algo nutrido interlocutor.
A tradicional imagem do escritor crispado com Portugal só aflora no momento em que Saramago, de cadeira de rodas, visita a inauguração, em Espanha, da grande exposição sobre a sua obra - "A Consistência dos Sonhos" -, e comenta: "É algo que parece que só se podia fazer em Lisboa, que é a capital do reino; pois não se fez e duvido que se faça". Na verdade far-se-á, e Saramago, numa cena que o filme também mostra, terá direito ao elogio público do primeiro-ministro José Sócrates.
Em contrapartida, os exemplos de irritações lusas com o escritor retrirado em Espanha são bastantes, muitas vezes dadas através de noticiários de rádio e televisão. "Saramago deve tudo a Portugal", diz uma voz na rádio, enquanto o visado toma o seu pequeno-almoço, aparentemente tão interessado no que ouve como se estivessem a transmitir a notícia de um acidente de viação. Já os sinais de indignação de Pilar com o que considera ser as ofensas portuguesas a Samago são mais evidentes. E quando, em Lisboa, se prepara para ver, na televisão, a abertura do festival de Cannes, que irá exibir "Blindness" de Fernando Meirelles, baseado em "Ensaio Sobre a Cegueira", não esconde a sua irritação.
Todos os canais portugueses estão há uma data de tempo a transmitir em directo declarações de Luís Filipe Vieira no estádio da Luz. "Quién es esse tio?!", pergunta, furiosa, a Saramago. Mas a notícia acaba por chegar: dura uns segundos e logo aparece no ecrã Rodrigo Guedes de Carvalho a anunciar a invenção do "primeiro soutien solar".
O português e a andaluza
Este filme, não convém esquecê-lo, chama-se" José e Pilar", e faz jus ao título. É, para usar as palavras do próprio Saramago, a história de como "um senhor calado, melancólico, um pouco triste" se encontrou com a energia e vitalidade desta andaluza e se "viu rodeado", citando novamente o escritor, "por 15 energúmenos selvagens", referência aos numerosos irmãos e irmãs de Pilar. O resultado é um Saramago que, salvo no período em que esteve internado e se receou (a começar por ele próprio) que morresse, passa boa parte do tempo a sorrir. Sorri quando pede a Pilar que lhe corte a etiqueta de uma camisola "Armani", ri-se quando esta lhe sugere que responda a um convite para integrar uma comissão do Dalai Lama afirmando-se disponível, mas lembrando que "é comunista" e "não acredita em deus nem vai acreditar nos próximos duzentos anos", e não consegue conter o riso quando uma jovem brasileira, numa sessão de autógrafos, lhe sussurra ao ouvido: "Eu te amo".
Pilar, e por extensão a sua família, é uma efectiva co-protagonista deste filme. O público português, para quem a jornalista espanhola era uma figura opaca de quem por vezes liam declarações nos jornais, ou viam algumas fugidias imagens num telejornal, sairá do visionamento deste documentário pelo menos com a sensação de que a ficou a conhecer de perto. E provavelmente dirá a si próprio que a opção de ir viver com Pilar para Lanzarote, tenha ou não sido provocada pelos delírios censórios de Sousa Lara, foi a mais sábia decisão da sua vida. Não porque Miguel Gonçalves Mendes procure esconder as facetas mais irritantes de Pilar - por exemplo a sua mania de enfatizar o que diz com pausas artificiais na dicção -, mas porque se vai tornando óbvio que é em Lanzarote que Saramago se sente efectivamente em casa, e certamente não na sua Azinhaga natal, que a dado momento visita contrariado, porque, explica à mulher, já lá não conhece ninguém. E é Pilar que lhe lembra, em tom quase admoestador: "Não vais lá por ti, vais lá pela aldeia".
O momento mais tenso entre Saramago e Pilar é quando ambos visitam a casa de uns amigos e se fala da possível vitória eleitoral de Obama, de quem Saramago diz ter sido sempre admirador, acrescentando: "ao contrário da minha senhora que era toda para a sehhora Clinton". Pilar abespinha-se e exalta-se. A dado ponto, Saramago, com aquela complacência tão tipicamente conjugal, comenta para os seus anfitriões que "quando ela se põe assim, é difícil chegar a algo". Mas talvez em nenuma outra cena a relação entre os dois pareça tão sólida e tão convincente.
A força de um documentário como este também depende de como Saramago e Pilar funcionam enquanto imagens numa tela, e Miguel Gonçalves Mendes filma-os admiravelmente, quer quando nos mostra um Saramago quase juvenil subindo uma montanha ou dizendo uma graça a Pilar, quer quando nos mostra um velho acabado e acabrunhado num quarto de hospital, quer quando, depois disso, nos mostra o homem quase milagrosamente rejuvenescido que escreve "A História do Elefante" e que se recasa com Pilar aos oitenta e tal anos. Ou quando nos mostra uma Pilar cansada, receosa de que Saramago possa morrer de um dia para o outro e irritada com os seus colegas de profissão que já vão tendo os obituários preparados, quer quando nos mostra a noiva jovial que, num cartório do registo civil, quando lhe perguntam se aceita Saramago, responde ao notário: "Hijo, claro!". Mas as mais notáveis imagens de Pilar são talvez as captadas no funeral da sua mãe, no interior de uma igreja, vestida de preto e com uma espécie de beleza serena que, para lá de todas as dissemelhanças físicas, pode fazer pensar em Ingrid Bergman.
O filme está estruturado em três actos: o primeiro, centrado em Lanzarote e na construção da biblioteca de Saramago, o segundo no período em que o Nobel da Literatura viaja por todo o mundo e acaba internado num hospital, e o terceiro quando o romancista regressa a casa, a Lanzarote, já farto das obrigações decorrentes da fama. Mas está cheio de efeitos circulares, uns mais óbvios, outros apenas sugeridos. Por exemplo: no início, Saramago conta que, em criança, tinha um pesadelo recorrente no qual se via num espaço triangular fechado e havia uma substância misteriosa que começava a crescer, a crescer, e que fatalmente o iria submergir. Enquanto se ouve a voz do escritor a contar isto em "off", o realizador mostra o sonho em termos gráficos, usando apenas algumas linhas brancas sobre fundo negro, que mostram uma figura estilizada no interior de um triângulo; este vai depois ficando preenchido até se ver apenas um emaranhado informe de linhas brancas. Já perto do final, um mapa do mundo traçado em linhas brancas mostra-nos as intermináveis viagens profissionais de Saramago, com setinhas brancas a partirem de Lanzarote em todas as direcções, até que tudo se transforma num novelo informe, como sugerindo que a criança antecipou em sonhos o pânico que Saramago poderá ter sentido no final da vida perante essa esmagadora onda de jornalistas, fotógrafos e fãs (e documentaristas) que ameaçava o seu espaço vital e lhe roubava o pouco tempo que tinha.
"Cansei-me de sorrir e do esforço de parecer inteligente", diz, após a inauguração da biblioteca de Lanzarote, à qual compareceu o ministro da Cultura espanhol. Mas o filme acaba com Saramago e Pilar filmados de costas (como Bogart e Claude Rains em "Casablanca"), num corredor de aeroporto. "O convite para ir a Quioto ainda está de pé e eu gostava de ir a Quioto", diz Saramago. "E gostava de ir à Índia". Só depois do genérico, reparece a imagem de Saramago na montanha: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio".